Mudança de época - Entrevista com o Papa Francisco

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<p>Entrevista concedida pelo Papa Francisco ao jornal italiano&nbsp;“II Messaggero” de 29 de junho 2014</p>
Publicado em: 23/07/2014 - 09:15
Créditos: Jornal “L’osservatore Romano” - Ano XLV nº 27 - 03 de julho 2014

O encontro foi em Santa Marta, na parte da tarde. Uma inspeção rápida e depois um guarda suíço acomodou-me numa pequena sala. Seis poltronas verdes de veludo meio gasto, uma mesinha de madeira, um televisor antigo, com a protuberância atrás. Tudo na mais perfeita ordem, o piso de mármore lustrado, alguns quadros. Poderia ser uma sala de espera paroquial, onde se vai pedir um conselho ou preparar os documentos matrimoniais.

Francisco entra sorrindo: “Finalmente! Leio os seus artigos e agora conheço-a”. Envergonho-me. “Quanto a mim, conheço Vossa Santidade e agora ouço-o”. O Papa ri. Ri com gosto, como fará outras vezes durante mais de uma hora de conversa contínua. Roma com os seus males de grande megalópole, a época de mudanças que enfraquecem a política; a dificuldade de defender o bem comum; a reapropriação por parte da Igreja dos temas da pobreza e da partilha (“Marx nada inventou”), o assombro diante das periferias da alma, o escorregadio abismo moral no qual se abusa da infância, se tolera a mendicância, o trabalho de menores e a exploração de prostitutas crianças, até com menos de quinze anos. E os clientes que poderiam ser os seus avôs; “pedófilos”: o Papa definiu-os exatamente assim. Francisco fala, explica, interrompe-se e repete-se. Paixão, doçura, ironia. Um fio de voz parece embalar as suas palavras. As mãos acompanham o raciocínio, enquanto as cruza ou abre, parecendo que desenham formas geométricas invisíveis no ar. Está bem disposto, ao contrário das vozes que circulam sobre a sua saúde.

Está na hora do jogo Itália-Uruguai. Para quem faz a torcida, Santo Padre?
Ah, por ninguém, de verdade. Prometi à presidente do Brasil (Dilma Rousseff, ndr) que permaneceria neutro.

Comecemos por Roma?
Mas sabe que não conheço Roma? Imagina que vi a Capela Sistina pela primeira vez quando participei no conclave que elegeu Bento XVI (2005, ndr). Nunca visitei os museus. O fato é que como cardeal não vinha para cá com frequência. Conheço Santa Maria Maior porque a visitava sempre. E também São Lourenço fora dos muros, onde fui em razão de algumas cerimônias de crisma quando ali estava o Pe. Giacomo Tantardini. Obviamente conheço a Praça Navona porque sempre ficava hospedado na “via della Scrofa”, ali perto.

Há algo de romano no argentino Bergoglio?
Pouco ou nada. Sou mais piemontês, pois estas são as raízes da minha família de origem. Contudo começo a sentir-me romano. Pretendo visitar o território e as paróquias. Estou a descobrir a cidade aos poucos. É uma metrópole belíssima, única, com os problemas das grandes cidades. Uma cidade pequena possui uma estrutura unívoca; ao contrário, uma metrópole inclui sete ou oito cidades imaginárias, sobrepostas, em vários níveis. Inclusive a níveis culturais. Por exemplo, penso nas tribos urbanas dos jovens. É assim em todas as metrópoles. Em novembro, em Barcelona, terá lugar um congresso dedicado exatamente à pastoral das metrópoles. Na Argentina foram promovidos intercâmbios com o México. Descobrem-se muitas culturas cruzadas, não tanto devido às migrações mas porque se trata de territórios culturais transversais, feitos de pertenças próprias. A Igreja deve saber responder também a este fenômeno.

Por que Vossa Santidade, desde o início, quis realçar tanto a função de bispo de Roma?
O primeiro serviço de Francisco é ser o bispo de Roma. O Papa possui os títulos de Pastor universal, Vigário de Cristo, etc, precisamente porque é bispo de Roma. É a escolha primária. A consequência da primazia de Pedro. Se um dia o Papa quiser ser o bispo de Tívoli é claro que me mandam embora.

Há quarenta anos, durante o pontificado de Paulo VI, o Vicariato promoveu o congresso sobre os males de Roma. Emergiu o cenário de uma cidade na qual quem possuía muito, tinha o melhor e quem tinha pouco, o pior. Hoje, na sua opinião, quais são os males desta cidade?
São os das metrópoles, como Buenos Aires. Alguns têm um aumento dos benefícios e outros estão cada vez mais pobres. Não conhecia esse congresso sobre os males de Roma. São questões muito romanas e, na época, eu tinha 38 anos. Sou o primeiro Papa que não participou do Concílio e que estudou teologia depois dele e, naquele tempo, a grande luz para nós era Paulo VI. Para mim, a Evangelii nuntiandi permanece um documento pastoral muito atual.

Existe uma hierarquia de valores a respeitar na gestão do Estado?
Certamente. Tutelar sempre o bem comum. É esta a vocação para todos os políticos. Um amplo conceito que inclui, por exemplo, a preservação da vida humana e a sua dignidade. Paulo VI costumava dizer que a missão da política é uma das formas mais elevadas de caridade. Hoje o problema da política - não falo só da Itália mas de todos os países, o problema é mundial - é que se desvalorizou, foi arruinada pela corrupção, pelo fenômeno das comissões ilegais. Recordo-me de um documento que os bispos franceses publicaram há 15 anos. Era uma carta pastoral que se intitulava Reabilitar a política e tratava exatamente deste tema. Se não houver serviço na base, não podemos compreender a identidade da política.

Vossa Santidade disse que a corrupção cheira à putrefação. E também que a corrupção social é o fruto do coração doente e não só de condições externas. Não existiria corrupção sem corações corruptos. O corrupto não tem amigos mas idiotas úteis. Poderia explicar melhor?
Falei sobre este argumento dois dias seguidos porque comentava a leitura da vinha de Nabot. Gosto de meditar sobre as leituras do dia. Primeiro tratei da fenomenologia da corrupção e depois do destino dos corruptos. Contudo, o corrupto não tem amigos, só cúmplices.

Na sua opinião fala-se muito sobre corrupção porque os meios de comunicação insistem demais sobre o tema ou porque efetivamente se trata de um mal endêmico e grave?
Não, infelizmente é fenômeno mundial. Há chefes de Estado na prisão exatamente por este motivo. Questionei-me bastante e cheguei à conclusão de que muitos males crescem sobretudo durante as mudanças epocais. Vivemos não só uma época de mudanças mas uma mudança de época. E, por conseguinte, trata-se de uma mudança de cultura; precisamente nesta fase emergem situações deste tipo. A mudança de época alimenta a decadência moral, não só na política, mas na vida financeira e social.

Também os cristãos não parecem brilhar pelo testemunho...
É o ambiente que facilita a corrupção. Não digo que todos são corruptos, mas penso que é difícil permanecer honesto na política. Falo de toda a parte, não da Itália. Penso também noutros casos. Às vezes, há pessoas que gostariam de agir com transparência, mas depois encontram-se em dificuldade, é como se fossem engolidas por um fenômeno endêmico transversal a vários níveis. Não devido à natureza da política, mas porque numa mudança de época os impulsos para um determinado desvio moral são mais fortes.

Vossa Santidade assusta-se mais com a pobreza moral ou material de uma cidade?
Ambas assustam-me. Por exemplo, posso ajudar um faminto a fim de que já não sinta fome, mas se perdeu o trabalho e não encontra um emprego, devemos enfrentar outro tipo de pobreza. Ele perde a dignidade. Talvez possa ir à Cáritas e levar um pacote de víveres para casa, mas experimenta uma pobreza gravíssima que fere o coração. Um bispo auxiliar de Roma contou-me que muitas pessoas vão ao refeitório às escondidas, cheias de vergonha, e levam alimentos para casa. A sua dignidade progressivamente vai sendo depauperada, vivem num estado de prostração.

Pelas estradas consulares de Roma veem-se meninas de apenas 14 anos, com frequência obrigadas a prostituir-se na total indiferença dos demais, enquanto no metro assiste-se à mendicância de crianças. A Igreja ainda é fermento? Sente-se impotente como bispo diante desta degradação moral?
Sofro. Sinto uma dor enorme. A exploração de crianças faz-me sofrer. Também na Argentina vê-se a mesma situação. Para alguns trabalhos manuais utilizam crianças porque elas têm as mãos pequenas. Mas exploram-nas também sexualmente nos hotéis. Certa vez disseram-me que numa rua de Buenos Aires havia prostitutas de 12 anos. Informei-me e efetivamente era assim. Senti-me mal. E ainda mais ao ver que paravam carros de grande cilindrada, conduzidos por homens maduros. Poderiam ser os homens maduros. Poderiam ser os seus avôs. Faziam a menina entrar no carro e pagavam-lhe 15 pesos, que depois serviam para comprar os descartes de droga, o “pacco”. Na minha opinião esses homens que fazem isso com as meninas são pedófilos. Acontece também em Roma. A cidade eterna que deveria ser um farol no mundo é espelho da degradação moral da sociedade. Penso que são problemas que se resolvem com uma boa política social.

O que pode fazer a política?
Responder de maneira eficaz. Por exemplo, com serviços sociais que ajudem as famílias a entender, acompanhando-as para que saiam das situações difíceis. O fenômeno indica uma deficiência do serviço social na comunidade.

Contudo, a Igreja trabalha muitíssimo...
E deve continuar a fazê-lo. É preciso ajudar as famílias em dificuldade, um trabalho crescente que exige o esforço comum.

Em Roma um número cada vez maior de jovens não vão à Igreja, não batizam os filhos, não sabem sequer fazer o sinal da cruz. Quais estratégias servem para inverter esta tendência?
A Igreja deve sair pelas ruas, procurar as pessoas, ir às casas e às periferias, visitar as famílias. Não ser uma Igreja que só recebe, mas que oferece.

E os párocos não devem pentear as ovelhas, pondo-lhes os rolos...
Obviamente. Estamos num momento de missão há cerca de dez anos. Devemos insistir.

Vossa Santidade preocupa-se pela diminuição da natalidade na Itália?
Penso que devemos trabalhar mais pelo bem comum da infância. Construir uma família é um compromisso, às vezes não basta um salário, não se chega ao fim do mês. Sente-se medo de perder o trabalho ou de não conseguir pagar o aluguel. A política social não ajuda. A Itália tem uma taxa de natalidade baixíssima, o mesmo acontece na Espanha. A França está um pouco melhor mas também baixa. É como se a Europa estivesse cansada de ser mãe, preferindo ser avó. Depende muito da crise econômica e não só de um desvio cultural orientado ao egoísmo e ao hedonismo. Há dias, li uma estatística sobre os critérios de gastos da população a nível mundial. Depois da alimentação, roupas e remédios, três vozes necessárias, seguem a cosmética e as despesas para animais domésticos.

Contam mais os animais que as crianças?
Trata-se de outro fenômeno de degradação cultural. Isto porque a relação afetiva com os animais é mais fácil, mais programável. Um animal não é livre, enquanto ter um filho é uma situação complexa.

O Evangelho fala mais aos pobres ou aos ricos para os converter?
A pobreza está no centro do Evangelho. Não se pode compreender o Evangelho sem entender a pobreza real, considerando que existe também uma belíssima pobreza de espírito: ser pobre diante de Deus para que Ele te preencha. O Evangelho dirige-se indistintamente a pobres e ricos. E fala tanto de pobreza como de riquezas. Não condena absolutamente os ricos mas as riquezas quando estas se tornam objetos idolatrados. O deus dinheiro, o bezerro de ouro.

Vossa Santidade passa por um Papa comunista, pauperista, populista. O “Economist”, que lhe dedicou uma foto na capa, afirma que Vossa Santidade fala como Lenin. Reconhece-se nessas vestes?
Digo somente que os comunistas nos tomaram a bandeira. A bandeira dos pobres é cristã. A pobreza está no centro do Evangelho. Os pobres são o centro do Evangelho. Leiamos Mateus 25, o protocolo com a qual seremos julgados: tive fome, tive sede, estive na prisão, adoeci, estava nu. Ou vejamos as bem-aventuranças, outra bandeira. Os comunistas dizem que tudo isto é comunista. Sim, como não, depois de vinte séculos. Então, quando se manifestam, poderíamos dizer-lhes: mas vós sois cristãos.

Se me permite um crítica...
Certamente...

Vossa Santidade fala pouco sobre as mulheres e quando o faz trata o argumento só sob o ponto de vista da maternidade, da esposa, da mãe, etc. E no entanto as mulheres já dirigem Estados, multinacionais, exércitos. Na Igreja, na sua opinião, que lugar as mulheres ocupam?
As mulheres são as coisa mais bonita que Deus criou. A Igreja é mulher. Igreja é feminino. Não se pode fazer teologia sem esta feminilidade. A senhora tem razão sobre isto: não se fala o suficiente. Concordo que se deva fazer mais sobre a teologia da mulher. Já o disse e estamos a trabalhar neste sentido.

Entrevê uma certa misoginia de fundo?
O fato é que a mulher foi criada a partir de uma costela... . Estou de acordo que devemos aprofundar mais a questão feminina, caso contrário não podemos compreender a própria Igreja.

Podemos esperar decisões históricas de Vossa Santidade, como uma mulher chefe de dicastério, não digo do clero...
Bem, muitas vezes os sacerdotes acabam sob a autoridade das governantas...

Em agosto Vossa Santidade irá a Coreia. E a porta para China? Está a apostar na Ásia?
Irei à Ásia duas vezes em seis meses. À Coreia em agosto para me encontrar com os jovens asiáticos. Em Janeiro ao Sri Lanka e às Filipinas. A Igreja na Ásia é uma promessa. A Coreia representa muito, tem uma história belíssima, por dois séculos não havia sacerdotes e o catolicismo cresceu graças aos leigos. Houve até mártires. Quanto à China, trata-se de um grande desafio cultural. Grandíssimo. E temos o exemplo de Matteo Ricci que praticou tanto bem...

Para onde vai a Igreja de Bergoglio?
Graças a Deus não tenho Igreja alguma, sigo Cristo. Não fundei nada. Sob o ponto de vista do estilo não mudei em relação a como era em Buenos Aires. Sim, talvez alguma pequena coisa, porque se deve, mas na minha idade mudar seria ridículo. Ao contrário, sobre o programa sigo o que os cardeais pediram durante as congregações gerais antes do conclave. Caminho naquela direção. O conselho dos oito cardeais, um organismo externo, nasceu disto. Foi criado para ajudar a reforçar a cúria. O que aliás não é fácil porque se damos um passo, logo em seguida compreendemos que é preciso fazer isto e aquilo, e se antes tínhamos um dicastério depois tornam-se quatro. As minhas decisões são fruto das reuniões pré-concleve. Nada fiz sozinho.

Uma abordagem democrática...
 Foram decisões dos cardeais. Não sei se é uma abordagem democrática, diria sinodal, embora a palavra não seja apropriada para os cardeais.

Que votos faz aos romanos para a solenidade dos padroeiros santos Pedro e Paulo?
Que continuem a ser bons. São muito simpáticos. Vejo-os na audiências e quando visito as paróquias. Desejo que não percam a alegria, a esperança e a confiança, não obstante as dificuldades. Também o dialeto romano é bonito.

Wojtyla aprendeu a dizer volemose bene, damose da fa’. Vossa Santidade aprendeu alguma expressão em “romanesco”?
Até agora pouco. Campa e fa’ campa

Franca Giansoldati