Pode o homem ouvir Deus?

No dia 5 de outubro, o papa Bento XVI abriu em Roma, na basílica de São Paulo fora dos Muros, a 12a. assembléia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, da qual tenho a graça de participar junto com outros 6 bispos católicos do Brasil. O Sínodo dos Bispos é um organismo permanente da Igreja criado pelo Papa Paulo VI, em 1965, a pedido do concílio Vaticano II; seu objetivo é promover ações de efetiva colegialidade universal entre os bispos e a colaboração destes com o Papa.

O Sínodo reúne-se ordinariamente em assembléia geral a cada 3 ou 4 anos, convocado pelo Papa; é um organismo consultivo e trata de questões que interessam à vida e à missão da Igreja em todo o mundo. Seus membros vêm das Conferências Episcopais de todos os países do mundo: desta vez, são cerca de 250 bispos, dos quais, bem 52 cardeais, além de um bom número de convidados, observadores, peritos e colaboradores, completando cerca de 450 pessoas. De 6 a 26 de outubro, eles farão  diariamente dois turnos de trabalho no anfiteatro da sala do Sínodo, no Vaticano.

O próprio Papa preside às assembléias do Sínodo, embora tenha confiado a coordenação dos trabalhos a um trio de cardeais, que atuam como presidentes delegados; uma  secretaria bem estruturada dá suporte a toda a complexa logística necessária para uma reunião desse porte. No final da  assembléia, o resultado dos trabalhos é entregue ao Papa, a quem cabe emitir um documento sobre o tema tratado.

A 12a. assembléia geral ordinária do Sínodo dos Bispos tem como tema  “a palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”. Depois do concílio Vaticano II, concluído e 1965, é a primeira vez que a reflexão sobre a temática da palavra de Deus é retomada num evento dessa importância. Nada mais justo, pois a Igreja é convocada e reunida pela palavra de Deus e, ao mesmo tempo, orientada e alimentada continuamente por ela; a própria Igreja existe para fazer ressoar a palavra de Deus no mundo e para que seu  anúncio e acolhida suscitem frutos na vida e na história dos homens.

Talvez para muitos possa parecer estranho até mesmo o conceito de “palavra de Deus”: Deus fala aos homens e se comunica com eles? Teria o homem a possibilidade de “ouvir Deus” e de lhe responder, de alguma maneira? Estas são questões  fundamentais na maneira cristã de compreender Deus e o homem: entendemos, sim, que Deus não é prisioneiro de sua perfeição absoluta e de seu silêncio eterno, e que, positivamente, falou e continua a se manifestar e a falar ao homem. Até mesmo “o firmamento anuncia suas grandes maravilhas” (cf Sl 88,6). O homem, por sua vez, tem uma estrutura eminentemente dialogal e, assim como é capaz de entrar em sintonia com outros seres humanos, também é capaz de acolher as manifestações de Deus e de entrar em comunicação com ele.

O coração humano tem sede de infinito, procura e deseja compreender a si mesmo e ao mundo, mas não consegue dar-se respostas satisfatórias; palavras humanas têm as dimensões e a capacidade daquilo que é humano e limitado. Mas a palavra de Deus revela-nos o mistério de Deus e de seu desígnio sobre nossa existência e sobre o mundo; ela expressa o diálogo de amor do Deus que vem ao nosso encontro e rompe nossos limites. Podemos conhecer Deus não apenas de maneira intelectual: ele se dirige ao coração dos seres humanos, convidando-os a viverem em comunhão com ele, como seus filhos queridos.

O coração humano tem sede de sentido, de beleza, de verdade; no fundo, é sede da palavra de Deus. Ele é capaz de sair do seu nada quando se põe a ouvir a palavra de Deus; com sua inteligência, acolhe e compreende e, com sua vontade, é capaz de responder. Nesta abertura e neste diálogo, ele encontra sempre mais a sua identidade e sua razão de existir. Poderíamos, por isso, definir o ser humano, na sua dinâmica existencial, como o “ouvinte da palavra de Deus”.

Para os cristãos, o máximo da revelação de Deus aconteceu quando o Filho de Deus veio ao mundo e, na expressão do evangelista S.João, a palavra eterna de Deus, também palavra criadora (cf Jo 1,3), assumiu nossa condição humana, “tornou-se carne e habitou no meio de nós” (cf Jo 1,14). Seria difícil conhecer e compreender Deus na sua “linguagem divina”; por isso ele veio ao nosso encontro, aproximou-se de nós, exprimiu-se com palavras, gestos e atitudes humanas, para que tivéssemos acesso mais fácil a ele. Pela fé na palavra de Deus, o homem pode perscrutar as insondáveis riquezas do mistério divino.

O Sínodo parte de uma preocupação: que o inestimável tesouro da palavra de Deus presente na Sagrada Escritura e na tradição viva da Igreja continue a ser comunicado à humanidade, acolhido com fé e valorizado sempre mais na vida das pessoas e nas estruturas de sua convivência. Embora a Bíblia seja o livro mais editado e divulgado, ela ainda é muito desconhecida, ou lida e interpretada de maneira inadequada; S. Jerônimo afirmava com razão que desconhecer a Sagrada Escritura é desconhecer a Cristo. É verdade que se trata de um texto muito complexo e sua compreensão oferece não poucos problemas, sobretudo diante de afirmações científicas que parecem privá-lo de qualquer credibilidade.

Por isso, o Sínodo também se ocupa dos desafios postos ao trabalho da Igreja para que a “palavra do Senhor” continue a ser anunciada e acolhida, oferecendo um fundamento sólido para os projetos humanos; a esse propósito, ao concluir os ensinamentos do Sermão da Montanha, Jesus usou uma comparação sugestiva: quem ouve suas palavras e as põe em prática constrói sua casa sobre a rocha; quem as ouve e não as pratica, constrói sobre a areia (cf Mt 7, 24-27).