O tema da inteligência artificial está sendo objeto de debates e de sérias interrogações um pouco por toda parte e não é sem motivo, pois essa tecnologia traz possibilidades impressionantes para o mundo da comunicação e das relações humanas. Alguns olham para essa novidade com grande otimismo, encantados com as perspectivas novas que ela traz para muitos setores da atividade humana, especialmente para a economia e a comunicação. Outros têm reações mais desconfiadas, preocupando-se com o mau uso dessa tecnologia.
Pode-se perguntar se o conceito “inteligência artificial” dado a essa nova tecnologia é o mais adequado e não pode induzir a equívocos. De fato, a inteligência é a capacidade de captar e de expressar o sentido das coisas e de estabelecer as relações de causalidade entre os conceitos; e também é a capacidade da análise crítica e da percepção ética. E isso é tipicamente humano. Não seria melhor usar o conceito “aprendizagem automática”, em vez de inteligência artificial, uma vez que esta é uma criação humana, não possui autonomia, depende do sujeito humano e reproduz o que lhe foi previamente oferecido pelo homem?
Também o papa Francisco referiu-se à inteligência artificial e às suas implicações, especialmente no campo das comunicações, na sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, que a Igreja comemora, neste ano, no dia 12 de maio. A boa comunicação faz parte da missão da Igreja. O papa não está entre os que condenam a priori a inteligência artificial, mas não esconde suas preocupações diante das possibilidades ambivalentes dessa novidade tecnológica. Já no início da sua mensagem, ele se distancia de alarmismos catastrofistas em relação à inteligência artificial, qualificando-a como uma “invenção maravilhosa”. Ao mesmo tempo, porém, convida a uma atitude atenta e sensível diante do uso dessa técnica que, como qualquer outra, é fruto do engenho humano e pode servir tanto para realizar coisas boas como para desencadear efeitos destrutivos para o próprio homem e o mundo.
Inegavelmente, a inteligência artificial possui um potencial enorme para se tornar determinante nas diversas formas de comunicação e na convivência humana. Empregada para o bem, ela tornará possível estender mais amplamente à comunidade humana os benefícios da informação aberta, da pluralidade de fontes, da educação e da cultura. Mas, se cair em mãos erradas e for posta a serviço da desinformação, da geração de notícias intencionalmente falsas com aparência de verdadeiras, dos discursos de ódio e dos monopólios na gestão da comunicação, quer estatais, quer privados, e da imposição de um pensamento único, ela pode representar um sério risco à liberdade e à convivência respeitosa e democrática.
Por isso é necessário prevenir, alerta o papa, “propondo modelos de regulamentação ética para contornar os efeitos danosos, discriminatórios e socialmente injustos dos sistemas de inteligência artificial e contrastar a sua utilização para a redução do pluralismo, a polarização da opinião pública ou a construção do pensamento único”. E propõe que a Comunidade das Nações trabalhe para “adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas”. Podemos ter nossas desconfianças em relação a tratados internacionais vinculantes que, tantas vezes, são pouco eficazes; contudo, sem referências comuns concordadas quanto ao desenvolvimento e à aplicação desse potencial tecnológico, como será o futuro da inteligência artificial?
Se não bastam as regras, o que mais poderia ajudar a fazer bom uso dessa “invenção maravilhosa”? Mais uma vez, a mensagem do papa indica um caminho: é preciso “crescer em humanidade e como humanidade”, e isso significa adotar posturas e decisões que ajudem a humanizar a convivência, em vez de ameaçá-la, e o reconhecimento de que todos estão unidos por laços comuns, em que uns dependem dos outros e as ações de uns geram consequências para os outros. Qual futuro da humanidade e do mundo queremos projetar e trabalhar com a ciência e a técnica? Certamente, não queremos uma comunidade de autômatos, manipuláveis e controlados por uns poucos detentores de tecnologias da comunicação e da manipulação, mas uma comunidade de pessoas livres, responsáveis e verdadeiramente humanas.
O tema torna-se apaixonante, pois tem a ver diretamente com aquilo que somos ou queremos ser, enquanto humanos. A evolução digital, aplicada ao recolhimento de dados (aprendizagem automática), pode representar um caminho de desumanização e escravização, se for aplicada sem critério às relações humanas, que não podem ser reduzidas, simplesmente, a dados quantificáveis e algoritmos. A comunicação humanizadora não pode ser dissociada das relações existenciais e de experiências personalizadas. É preciso manter o ser humano, e não um mecanismo tecnológico, por maravilhoso que seja, como sujeito responsável pela comunicação.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado originalmente no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 11 de maio de 2024