O livro de Tobias, na Bíblia, traz a história edificante de dois personagens, Tobias e Sara, que procuraram andar pelos caminhos da verdade e da justiça durante toda a sua vida (cf Tb 1,3). Passaram por mil provações, mas não perderam a fé e a confiança em Deus, sendo, por isso, recompensados. Tomemos aqui apenas a figura emblemática de Tobias para uma reflexão sobre alguns aspectos fundamentais da religião.
Tobias é praticante fiel da Lei de Moisés longe da pátria, no contexto difícil da cidade de Nínive, na Caldéia; o cuidado dos pobres e a prática das obras de misericórdia, como o sepultamento digno dos mortos abandonados pelas ruas e praças, fazem-no enfrentar o preconceito, a zombaria e o desprezo dos vizinhos. Sofre também perseguições e sua própria vida está em perigo, mas ele não desiste de fazer o que seu coração indica como certo e agradável a Deus. Para completar, ele próprio é atingido por uma desgraça e fica cego; sua fé em Deus é questionada até por familiares e ele cai numa angustiante crise religiosa. Vem-lhe a tentação de pensar que está fazendo tudo errado, que seus detratores é que estão certos e que a prática do bem e o esforço por uma vida reta não valem a pena. A crise das pessoas religiosas não é rara e a perseverança na fé, com freqüência, é posta duramente à prova pelas contradições da vida. A história de Tobias tem algo em comum com a do justo Jó e de muitos outros personagens bíblicos, que passam por situações semelhantes. Coisas assim acontecem também hoje!
Na sua angústia e solidão, Tobias se desabafa diante de Deus; não é proibido chorar no ombro de Deus… Mas, sendo um homem reto e temente a Deus, ele persevera no bem e mantém firme sua confiança em Deus: “Senhor, tu és justo e justas são todas as tuas obras; teus caminhos são misericórdia e verdade e és tu que julgas o mundo“ (3,2). Quantas vezes a religião é vista apenas como um meio para obter vantagens, ou para se livrar de toda dor, em vez de ser vivida como um caminho pedagógico através do qual Deus nos leva a amadurecer humanamente, dando-nos a sabedoria da vida… Tornou-se comum transformar a religião num conjunto de produtos oferecidos no grande mercado das comodidades, que se vendem e compram para a satisfação de necessidades momentâneas, sem que haja verdadeira relação com Deus. A pressa para obter tudo e a pretensão de impor as próprias vontades ao Todo-Poderoso transforma Deus num autômato manipulável pelo capricho do homem… Isso é um “deus ex machina”, já não é Deus, nem é verdadeira religião.
A religião é, acima de tudo, um caminho feito com Deus; por isso ela também requer escolhas, renúncias e coerência moral. Seria falso buscá-la apenas como um meio para obter vantagens e fugir dos sofrimentos a todo custo, mesmo sacrificando valores fundamentais para a vida. Deus nem sempre se encontra nos caminhos do homem; é este que deve buscar os caminhos de Deus e por eles andar. Também Tobias deseja a saúde e quer recuperar a visão, mas tem paciência com as “demoras de Deus” e reconhece que Seus caminhos, por misteriosos e difíceis que sejam, são bons e justos. Enquanto isso cresce em humildade e, na sua cegueira, vai compreendendo os mistérios de Deus e o significado da vida. É bem conhecido como sofrimentos podem ser ocasião de afastamento, ou de aproximação de Deus! Muitas pessoas religiosas sofrem profundamente, mas são amigas de Deus e em suas vidas transparece a proximidade do Altíssimo.
O justo e paciente Tobias continua a esperar pelo socorro de Deus e tem a certeza de que não será desiludido: “Recordai, Senhor, vossa ternura e vossa compaixão, que são eternas. Não se envergonha quem põe em vós sua esperança, mas, sim, quem por um nada nega sua fé” (cf Sl 25,4). Suas preces são ouvidas e Deus envia-lhe o anjo Rafael, “médico de Deus”, para que restituir-lhe a visão. Seu conforto é grande e a alegria preenche novamente seus dias, podendo constatar pessoalmente que Deus é fiel e não abandona quem nele confia: “O Senhor abre os olhos aos cegos e faz erguer-se o caído; o Senhor ama aquele que é justo” (Sl 146, 8)
Sem saber ainda quem é Rafael, Tobias quer recompensá-lo generosamente, partilhando com ele seus bens, mas acaba aprendendo mais uma lição preciosa: os benefícios de Deus não se pagam, não compram nem se vendem, mas são acolhidos de alma agradecida. Rafael recomenda: “Bendizei a Deus e dai-lhe graças diante de todos os viventes pelos benefícios que vos concedeu! Diante de todos, manifestai as obras de Deus e não hesiteis em expressar-lhe vosso reconhecimento. Se é bom guardar o segredo do rei, melhor ainda é divulgar as obras de Deus!” (cf 12, 6-7).
Não se fazem negócios com Deus, nem se podem pretender direitos diante dele em troca de bens materiais. Mas também é verdade: Deus não se deixa vencer em generosidade e não esquece o bem praticado de bom coração. Rafael insiste: “continuem bendizendo a Deus pelo bem que lhes fez! Manifestem a todos que Ele é justo! Continuem a fazer o bem, e o mal não os atingirá. Melhor é ter pouco, com justiça, do que ter uma fortuna, com iniquidade. É valiosa a oração com o jejum e a esmola com a justiça. Melhor é dar esmolas que acumular tesouros. Os que dão esmolas serão saciados de vida. Aqueles, porém, que cometem o pecado e a injustiça são inimigos de si mesmos” (cf 12,7-10).
Tobias viveu ainda muitos dias felizes, juntamente com sua família; e nunca se arrependeu por ter perseverado na prática do bem, mesmo no meio das contradições da vida. Seu coração estava repleto de paz. E o anjo Rafael voltou para junto de Deus, pronto para novas missões…
Artigo publicado em O Estado de São Paulo, ed. de 13.06.2009