Anencéfalos: quantas interrogações!

Acompanhamos, nessas últimas semanas, as audiências públicas promovidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em vista da eventual legalização do aborto nos casos de fetos ou bebês com anencefalia. O debate, por vezes, torna-se apaixonado, perdendo o foco e a noção da gravidade daquilo que está em jogo.

Não se trata, com certeza, de uma partida entregue às torcidas a favor ou contra, pois está em jogo a vida ou a morte de seres humanos. Nem é o caso de fazer uma lei nova, pois quem está sendo interpelado é a Corte Suprema, que deve dizer se a Constituição Brasileira permite ou não a realização do aborto de seres humanos afetados por anencefalia. A Constituição, no caputdo artigo 5º, garante “a inviolabilidade do direito à vida aos brasileiros e estrangeiros residentes no País”. Isso é vago, é verdade.

A lei brasileira ainda não assegura cidadania nem direitos aos não-nascidos; é uma lacuna e estaria na hora de o Congresso votar um adequado estatuto para os nascituros (daqueles que ainda não nasceram). Mesmo assim, o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe: “Toda pessoa tem o direito a que se respeite sua vida. Este direito está protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção” (art. 4°). E nossa Constituição confirma: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte” (cf. art. 5° § 2°). Não me consta que isso tenha sido revogado.

O Estado brasileiro é laico, sem uma definição religiosa. Isso é claro. Mas a sociedade brasileira não é laica, ela é pluralista e ninguém poderia ter a pretensão de representar a única opinião aceitável num Estado laico, que não impõe à sociedade um pensamento único. Como bispo da Igreja católica, exponho meu pensamento em coerência com a antropologia e a postura moral da minha Igreja, que é clara: não é lícito tirar a vida de ninguém; com boa segurança em evidências científicas, entendo que um bebê anencéfalo é um ser humano vivo, por isso sua frágil vida deve ser respeitada, mesmo que sua sobrevivência após o nascimento seja muito breve. Aplica-se aqui o 5° mandamento do Decálogo: “não matarás”, uma lei antiga e civilizatória; religiosa, mas nem só religiosa pois no progresso das civilizações esse preceito ético fundamental foi assimilado nos códigos da maioria das nações e também na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

Fico feliz quando vejo a posição da Igreja católica associada à defesa da estrita inviolabilidade da vida humana, mesmo ainda não nascida. Que isso fique registrado para o futuro. Mas aqui não se trata de defender um interesse da Igreja: a proteção da vida humana inocente e indefesa deveria interessar a todos, acima de concepções religiosas ou ideológicas; é questão de humanidade, não apenas de religião. Também por isso a postura da Igreja católica não se fundamenta apenas no seu pensamento religioso e suas convicções não se chocam necessariamente com o bom direito ou a ciência, nem estão fechadas para valores universais, compartilhados também com outros grupos religiosos e mesmo com ateus. Na defesa da vida não se deveria cair no ardil de contrapor argumentos de “religiosos” e de “não religiosos”; a desqualificação imediata do interlocutor “religioso” poderia ser discriminação religiosa.

No caso dos anencéfalos, a meu ver, duas questões são determinantes: são seres humanos, ou não? São seres humanos vivos, ou já mortos? Entendo que as duas interrogações têm respostas positivas e, por isso, o tratamento jurídico e humano deve ser conseqüente. É sobre o status humano do feto ou bebê anencéfalo que se vai decidir; tudo o mais é secundário: o tempo de sobrevida, a perfeição do corpo, do cérebro ou de outro órgão, o aspecto estético, os sentimentos ou expectativas de outras pessoas…  A inviolabilidade da vida é um direito primeiro.

De toda maneira, à luz da sã razão, outras indagações pertinentes também precisam ser feitas: Os anencéfalos têm uma dignidade humana a ser protegida por lei? A dignidade de um ser humano reside apenas em sua racionalidade bem funcionante? O resultado do eletroencefalograma deveria ser considerado o critério decisivo para declarar a morte dos anecéfalos? Como afirmar que está morto um feto que, com toda evidência, se desenvolve no seio da mãe? A certeza da brevidade da vida, após o nascimento, é argumento válido ou suficiente para antecipar a morte do bebê durante a gestação? O feto ou bebê anencéfalo possui uma grave patologia, ou ele próprio é a patologia que deve ser eliminada? O direito da mulher grávida ao bem-estar está acima do direito do bebê à sua frágil vida? A decisão sobre o aborto deve ser deixada somente à mulher? A mãe de um bebê anencéfalo fica mesmo aviltada em sua dignidade, ou não é a sociedade que acaba consagrando mais um preconceito social e cultural contra a dignidade e o respeito que merecem estas mulheres? A situação da mulher grávida de um bebê anencéfalo pode, honestamente, ser comparada com uma tortura? Liberar o aborto dessas frágeis criaturas humanas representa um verdadeiro progresso da humanidade, uma bela vitória da civilização e da cultura dos direitos humanos? Afinal, que mal cometeram os bebês anencéfalos para que se trame contra a vida deles?

A decisão do STF terá conseqüências, pois consagrará princípios para a posterior jurisprudência. E aí vai mais uma pergunta: depois dos anencéfalos, qual será o próximo grupo de “incompatíveis com a vida”, de incômodos e indesejados na lista da eliminação?

Publicado em O Estado de São Paulo, ed. de 13.09.08