A Quaresma inicia com um chamado à conversão: “convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,25). A vida do cristão é um constante processo de conversão a Deus. Somos tentados de muitos modos para nos desviarmos de Deus e dos seus caminhos e a construir uma vida sem Deus. A grande e mais perigosa tentação é a da autossuficiência, aliada à soberba: achar que não precisamos de Deus, que nos bastamos a nós mesmos, que podemos, tomar o lugar de Deus. E então passamos a viver em pecado.
Talvez não vejamos motivos para nos convertermos e achamos que está tudo bem em nossa vida. E vivemos friamente nossa fé e nossa relação com Deus e o próximo e não progredimos na vida cristã. O chamado à conversão é para nos voltarmos para Deus novamente, abandonando a atitude de soberba e autossuficiência. O chamado à conversão é concreto: é reconhecer que Deus é Deus e que nós não somos deuses; é abraçar sua vontade, praticando os mandamentos; é vivendo a caridade para com o próximo e não fechar o coração diante de suas necessidades e sofrimentos.
A Quaresma nos recorda a atitude de penitência e conversão, que deve acompanhar toda a nossa vida, até o último dos nossos dias neste mundo. Neste ano, mediante a Campanha da Fraternidade, nosso processo de conversão passa também pela revisão de nossas atitudes em relação ao cuidado do mundo criado por Deus. No final do relato bíblico da criação do mundo, Deus contempla a sua obra e se alegra. “Deus viu tudo o que tinha feito. E era muito bom” (Gn 1,31). Isso significa que era harmonioso, sem maldade, bonito e funcionava bem. O problema vem depois, com a história do pecado de Adão e Eva, que se deixaram levar pelo tentador e pretenderam ser como Deus. A partir daí, entrou a desarmonia e a confusão no mundo.
Começaram as brigas e a violência, a ambição desmedida, a ganância, a sede de poder e o descaso de um pelo outro. E também se estragou a relação do homem com a natureza. Em vez do cuidado do “jardim de Éden”, que Deus colocou sob os cuidados de Adão e Eva, começou uma relação de domínio e de exploração do homem sobre a criação de Deus. Assim chegamos ao ponto de termos um mundo cada vez mais descuidado e até hostil ao homem. Se não nos convertermos nas nossas relações com a natureza, ela deixará de ser a casa comum de toda a família humana para se transformar numa casa inabitável, hostil e em ruínas.
“Fraternidade e ecologia integral”: este é o tema da Campanha da Fraternidade deste ano. Ao longo da Quaresma, somos chamados a uma conversão que inclua nossas relações com a natureza: reconhecemos que ela é um dom precioso do Criador, não apenas para nós, mas também para as futuras gerações? Cuidamos do ar, da água, do verde, da vida de todos os seres e da pessoa humana, que também é parte desse mundo maravilhoso criado por Deus? Ou colaboramos com a nossa parte para que este mundo fique cada dia um pouco menos belo, bom e habitável?
O cuidado do próximo, em quem reconhecemos um irmão e uma irmã (“fraternidade”), é parte da ecologia integral. Todas as injustiças e violências, todo desprezo e ódio contra o próximo é contrário ao plano de Deus em relação à criação. Um mundo bem zelado e cuidado também é sinal de fé e de esperança. Neste Ano Jubilar, vivamos a Quaresma na perspectiva da conversão e da busca do perdão de Deus. E reviverá a esperança para nós e para o mundo. Somos todos “peregrinos de esperança”.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
Artigo publicado no Folheto Litúrgico “Povo de Deus em São Paulo” para a Quarta-Feira de Cinzas, 05 de março de 2025