‘Corajoso cristão, incansável apóstolo’

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Na conclusão do Sínodo dos Bispos, Papa Francisco beatifica Paulo VI, pontífice que liderou a Igreja entre 1963 e 1978
Publicado em: 22/10/2014 - 10:30
Créditos: Edição nº 3024 do Jornal O SÃO PAULO – página 11

Revela-se a imagem do recém-beatificado Papa Paulo VI na praça de São Pedro, no Vaticano. Após a fórmula da beatificação dita pelo Papa Francisco, o novo “bem-aventurado” surge à multidão em uma foto grande, que pende da sacada central da basílica. Paulo VI aparece em pé, sorrindo e de braços abertos, gesto que na iconografia cristã representa a intercessão. Gesto, também, que muitos fazem ao serem acolhidos pelas massas, o que pode levar a crer que Paulo VI era um grande arrebatador de multidões. Não era. O chamado “papa do diálogo” era um homem sério e tímido. Discreto, sofreu por muito tempo em silêncio com problemas de saúde. Mas, em um mundo cada vez mais adverso à religião, entre 1963 e 1978, ouvia e estimulava diferentes vozes dentro e fora da Igreja. Falava pouco, mas escrevia muito. Abriu as portas para o diálogo com outros cristãos e outras religiões. Criticou o modo cruel como o mundo vinha se desenvolvendo. Organizou a discussão sobre o valor da vida humana. Seu pontificado ocorreu entre o de João XXIII, o “papa bom”, e o de João Paulo I, o “papa sorriso”, dois comunicadores muito populares. Mas foi por meio de seus ouvidos, seus textos e suas fortes decisões que Paulo VI conseguiu transformar a Igreja.

O Papa Francisco, buscando reverter a ideia de que o legado de Paulo VI não havia ainda sido reconhecido pela Igreja, aceitou beatificá-lo no dia 19 de outubro, na missa de conclusão do Sínodo dos Bispos sobre o tema da família. “Sobre este grande Papa, este corajoso cristão, este incansável apóstolo, diante de Deus hoje só podemos dizer uma palavra tão simples, sincera e importante: Obrigado! Obrigado, nosso caro e amado Papa Paulo VI! Obrigado por seu humilde e profético testemunho de amor a Cristo e à sua Igreja!”, declarou, na homilia.

Francisco atribuiu a ele um grande exemplo de humildade e recordou o texto do diário de Paulo VI, no qual diz: “Talvez o Senhor tenha me chamado a este serviço não tanto porque eu tenha qualquer atitude, ou para que eu governe e salve a Igreja de suas presentes dificuldades, mas para que eu sofra alguma coisa pela Igreja, e fique claro que Ele, e não outro, a guia e a salva.” Segundo Francisco, “enquanto se formava uma sociedade secularizada e hostil, Paulo VI soube conduzir com sabedoria voltada para o futuro – e às vezes na solidão – o timão da barca de Pedro, sem perder nunca a alegria e a confiança no Senhor”.

Repercussão

Quando foi eleito papa, o então Cardeal Giovani Battista Montini, arcebispo de Milão, escolheu para si o nome do “apóstolo missionário”. Segundo afirmou o Cardeal Roger Etchegaray à agência Catholic News Agency, Paulo VI era “um papa que parecia ser tímido, discreto, mas que, ao mesmo tempo, tinha esse zelo missionário”. “Se eu tivesse que resumir Paulo VI em dois adjetivos, diria que ele foi místico e profético”, afirmou. “Ele foi considerado um papa frio, mas foi realmente um místico. Aprofundar sua espiritualidade faria tão bem a qualquer um”.

De acordo com o escritor David Gibson, em artigo para a Religion News Service, são quatro as principais características do legado de Paulo VI: a primeira, “reformador”, por ter promovido a colegialidade entre os bispos, a internacionalização da administração da Igreja e, mais do que isso, ter liderado grande parte do Concílio Vaticano II. A segunda, “um papa evangelizador”, pela essencial encíclica Evangelii Nuntiandi, de forte teor pastoral. A terceira, “um papa peregrino”, por ter sido o primeiro papa da era moderna a ter viajado para fora da Itália: visitou a Ásia, a África e a América Latina. E, quarta, ele foi um “construtor de pontes”, buscando sempre promover a unidade da Igreja e o “diálogo com o mundo”.

O biógrafo Russel Shaw, membro da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma, disse à agência Aleteia que Paulo VI governou a Igreja durante um período muito duro. Os anos após o Concílio Vaticano II, que foi de 1962 a 1965, foram marcados por uma forte divisão ideológica. Discutia-se a questão dos métodos contraceptivos (que resultou na encíclica Humanae Vitae) e, em âmbito administrativo, viu-se várias pessoas deixarem a vida religiosa. “O vírus da dissidência se espalhou rapidamente e, com apoio da mídia, logo se impregnou”, contou Shaw. O “papa do diálogo” foi injustamente acusado por isso, pois, segundo Shaw, a divisão já existia antes dele. “Será que sua santidade foi construída e testada durante sua última e difícil década?” Com a beatificação, afirma o escritor, “aqueles que admiraram Paulo VI agora dizem: ‘Até que enfim, ele está recebendo o que merece”.

Felipe Domingues