Por uma espiritualidade ecológica

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20/07/2016 - 16:00

Passado um ano da publicação da Encíclica Laudato Si’, devemos nos perguntar pelas reações a esse documento pontifício. A segunda encíclica do Papa Francisco teve uma grande aceitação em todo mundo, mesmo fora do âmbito eclesial, seja entre as pessoas de outras confissões de fé ou entre os não crentes. Alcançar as transformações, se elas já aconteceram, seria algo muito difícil, mas podemos refletir sobre um ponto basilar desse documento, que é a espiritualidade ecológica.

O Papa Francisco chama a atenção para uma questão que, a princípio, pode parecer estranha, que é a conversão ecológica. Diz o Papa: “Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver.” (Laudato Si’, 216).

Conversão significa mudança de rumo, uma virada na direção, e essa é uma exigência e uma urgência para que a ecologia se torne realmente uma preocupação, para “ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo” (Laudato Si’, 19). Assim, além de falar em ecologia, é preciso considerar a centralidade da pessoa em todo esse processo. Recorrendo à Sagrada Escritura, encontramos um exemplo e um testemunho, o de Jonas.

O profeta Jonas foi um homem inquieto e inconformado. Ele recebeu de Deus a incumbência de ir a Nínive para anunciar a sua destruição. Jonas resistiu a essa ordem divina, rejeitando a missão. Enquanto fugia, ele passou por muitas dificuldades, inclusive o risco de naufrágio e morte, foi engolido por um peixe e depois de ser “vomitado” na praia, Jonas se deu por vencido e foi a Nínive.

Logo após o primeiro anúncio, o rei e toda a cidade fizeram um grande jejum, como sinal e desejo de verdadeira conversão. Por causa disso, Deus não destruiu a cidade (cf. Jn 3,10). Mas o perdão e misericórdia de Deus despertaram em Jonas um sentimento de amargura e de irritação. Por isso, ele saiu e foi sentar-se fora da cidade, sob a sombra de uma “mamoneira”, e ali ficou na sua amargura. Durante a noite, um verme consumiu a mamoneira e no dia seguinte o sol e um calor escaldante castigaram a cabeça do profeta, que lamentou a destruição da mamoneira.

Diante desses acontecimentos, Deus falou ao profeta, questionando-o: “Tiveste compaixão de um arbusto - replicou-lhe o Senhor - que não custou o teu trabalho, que não fizeste crescer, que nasceu numa noite e numa noite morreu. E, então, não hei de ter compaixão da grande cidade de Nínive, onde há mais de 120 mil seres humanos, que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e uma inumerável multidão de animais?...” (Jn 4, 10-11).

A conversão e a espiritualidade ecológica não são uma ideologia e nem um conjunto de conceitos intelectuais, defendidos por alguns grupos. Jonas lamentou pela destruição da mamoneira, mas não se comoveu diante do sofrimento das pessoas que habitavam a grande cidade de Nínive. Uma espiritualidade cristã e ecológica não pode fazer a separação entre a natureza e o homem, mas deve tomar consciência de que as duas realidades fazem parte da única obra da criação.

Se a natureza sofre com a exploração irracional dos recursos e das riquezas, também as pessoas sofrem com as mudanças climáticas e com a poluição das águas e do ar. Por isso, é preciso uma conversão que mude os hábitos de consumo e equilibre a exploração e uso dos recursos naturais. São as pessoas que precisam da conversão para que a natureza seja beneficiada com a mudança.

Mas a conversão não pode ser superficial e nem ocasional. O entusiasmo não produz mudanças duradouras. A espiritualidade diz respeito à vida interior, à forma de relacionamento com Deus e com próximo e é o caminho para uma mudança efetiva no relacionamento com a natureza. Foi pela escuta da palavra que Jonas ampliou a sua compreensão da misericórdia de Deus. A mudança de Jonas foi, de certa forma, uma conversão ecológica, na medida em que compreendeu e aceitou a vontade de Deus sobre a pessoa humana e sobre as criaturas.

Uma autêntica espiritualidade ecológica, fruto da relação com Deus, com os irmãos e com a natureza, tem como modelo São Francisco. Assim diz o Papa: “Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade” (Laudato Si’, 10).

Assim se reza na terceira oração eucarística: “Na verdade, vós sois santo, ó Deus do universo, e tudo o que criastes proclama o vosso louvor, porque, por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, e pela força do Espírito Santo, dais vida e santidade a todas as coisas e não cessais de reunir o vosso povo, para que vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr-do-sol, um sacrifício perfeito”. Por isso, a vida eucarística exige de todos nós uma espiritualidade ecológica que respeite a pessoa humana e cuide das criaturas.

Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo auxiliar da Arquidiocese na Região Brasilândia;

e vigário episcopal para a pastoral da comunicação

Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO - edição 3111 - 20 a 26 de julho