Há 50 anos, coreanos vivem a fé e a cultura em São Paulo

A A
Paróquia Pessoal Coreana São Kim Degun na tradição da fé
Publicado em: 11/08/2015 - 09:00
Créditos: Edição nº 3063 do Jornal O SÃO PAULO – páginas 12-13

João Hyung’sik Jun nasceu em Seul, na Coreia do Sul, e hoje, aos 62 anos, 50 deles vividos no Brasil, participa da comunidade católica coreana em São Paulo, que em 2015 celebra cinco décadas de atuação na capital paulista. Católico há 28 anos, João é de família budista, mas veio ao Brasil por conta da imigração dos católicos coreanos.

“Viajamos dois meses pelo mar, desembarcamos em Porto de Paranaguá, distante 220 quilômetros do Distrito e Fazenda Santa Maria, no município de Ponta Grossa, no Paraná. Lá, naquela época, não havia a energia elétrica, água encanada, hospital, nem farmácias, nem a escola, nem a igreja que, aliás, ajudei a construir, mesmo sem frequentá-la, porque minha família não era católica”, lembrou.

Ele contou que foram tempos muito difíceis, sofridos e até com riscos de perder a vida. “No começo, pensamos que aquela seria a nossa vida para sempre. Nenhuma luz ou qualquer leve esperança de um futuro, nem ledos raios de sol para aquecer e iluminar o caminho... Quando me lembro daqueles tempos, sempre me emociono e até choro”. Depois da vida na Fazenda Santa Maria, João conseguiu vir para São Paulo e, então, começou uma nova etapa, na cidade que ele considera “de oportunidades, decepções, traições, Evangelho e vida nova”.

A primeira comunidade coreana brasileira, assim como as esperanças de João, também nasceu na cidade de São Paulo, no dia 9 de maio de 1965, com a presença de 44 membros na Igreja de São Gonçalo, localizada atrás da Catedral da Sé. “Ela se forma pela necessidade dos imigrantes coreanos de ter uma comunidade na qual possam se encontrar e vivenciar a fé de forma comunitária”, explicou o Padre Daniel Koo, responsável pela Área Pastoral São João Batista, na Região Episcopal Lapa.

De origem coreana, Padre Daniel nasceu em Düsseldorf na Alemanha, pois seus pais eram imigrantes e ali se conheceram. A mãe de Daniel queria ser freira antes de conhecer o esposo, que trabalhava nas minas de carvão mineral do vale Ruhr. “Naquele país, a comunidade católica coreana já tinha volume. Minha mãe e meu pai se conheceram por meio dessa comunidade e se casaram lá. Meu irmão mais velho nasceu em Wuppertal, e dois anos depois eu, em Düsseldorf. Depois de trabalhar 11 anos na Alemanha, meu pai decidiu imigrar para o Brasil. Chegamos a São Paulo em 1976.”

Coroinha desde 1986, Daniel disse que começou a sentir o chamado para a missão sacerdotal por volta do ano 1989, mas sempre postergou a decisão. “Tentei de tudo, chegando a cursar mecânica de aviação, até que finalmente, em 2005, entrei para o seminário, à época chamado Seminário Propedêutico Beato Antônio de Sant’Anna Galvão”, recordou o Padre, ordenado em 2009, na Catedral da Sé.

Protagonismo Leigo

“A Igreja na Coreia conserva também a memória do papel primário desempenhado pelos leigos, quer nos alvores da fé, quer na obra de evangelização. Com efeito, nessa terra, a comunidade cristã não foi fundada por missionários, mas por um grupo de jovens coreanos na segunda metade de 1700; fascinados por alguns textos cristãos, estudaram-nos a fundo e escolheram-nos como regra de vida. Um deles foi enviado para Pequim a fim de receber o Batismo, e depois esse leigo batizou por sua vez os companheiros. Daquele primeiro núcleo, desenvolveu-se uma grande comunidade, que, desde o início e durante cerca de um século, padeceu perseguições violentas, com milhares de mártires. Por conseguinte, a Igreja na Coreia está fundamentada na fé, no compromisso missionário e no martírio dos fiéis leigos.”

O trecho acima é da audiência proferida pelo Papa Francisco no dia 20 de agosto de 2014, por ocasião da sua visita à Coreia do Sul. A força e presença dos leigos na fundação da comunidade católica coreana é também uma característica forte da história que começou há 50 anos no Brasil, mais especificamente em São Paulo.

Ainda na Coreia, mesmo perseguidos e martirizados, os leigos formavam pequenas comunidades, escondidas, para compartilhar o Evangelho e para a oração. “Os primeiros imigrantes coreanos católicos que aqui chegaram, logo formaram comunidade. Sem um padre coreano por um longo tempo, a Arquidiocese de São Paulo cedeu padres para cuidar da primeira e pequena comunidade. E, no segundo domingo de maio, dia das mães, em 1965, foi celebrada a primeira missa” ressaltou João Jun.

Uma Paróquia Pessoal

A Paróquia Pessoal Coreana Nossa Senhora Rainha e São Kim Degun faz parte das paróquias pessoais pois, conforme explica artigo 518 do Código de Direito Canônico, é “conveniente, que se constituam paróquias pessoais, em razão de rito, língua, nacionalidade dos fiéis de um território, e também por outra razão determinada” Assim, ela não tem um caráter territorial, como a maioria das paróquias da Arquidiocese de São Paulo, mas, sim, de reunir a comunidade coreana da cidade de São Paulo e de outros lugares como Campinas (SP), Curitiba e Ponta Grossa (PR) e Belo Horizonte (MG).

‘‘A Paróquia tem à frente três pastores, sendo um pároco e dois vigários, um conselho paroquial composto por lideranças das diversas pastorais reunidas e também uma missão beneditina composta por religiosas. Possui uma escola de língua coreana, uma creche aberta para toda a comunidade coreana, católica ou não, e uma ordem terceira de São Francisco’; enumerou Padre Daniel.

Participam da Paróquia aproximadamente 4.500 fiéis, sem contar com as comunidades do interior de São Paulo e de outros estados. Mantém vínculos com a comunidade local e realiza, anualmente, uma feira cultural coreana, com barracas de comidas típicas e venda de diversos produtos. Possui uma ação conjunta com a Congregação das Irmãs de Maria de Banneux, em Santo André (SP), que tem uma obra social com creche, serviços médicos e odontológicos junto à população carente da cidade.

“A Paróquia tem uma importância vital para os coreanos no Brasil, pois não somente reúne a comunidade católica, mas mostra, a sua importância para um povo que necessita de uma comunidade que perpetue a sua cultura. Vivifica e torna presente essa cultura mesmo dentro de uma realidade muito diferente que é a do Brasil’; completou o Padre.

Nayá Fernandes

‘Agradeçam a seus pais e avós’

“Esta é uma paróquia missionária”, destacou o Cardeal Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo, na homilia da missa celebrada no sábado, dia 1° de agosto, na matriz da Paróquia Pessoal Coreana Nossa Senhora Rainha e São Kim Degun, com jovens, adolescentes e crianças, por ocasião do cinquentenário da comunidade. A celebração também contou com a presença do bispo da Diocese de Daejeon, na Coreia do Sul, Dom Lázaro You Heungsik, e do bispo eleito de Blumenau (SC), Dom Rafael Biernaski, além de padres da missão coreana e amigos.

O Arcebispo recordou a história da comunidade católica coreana e motivou os jovens e adolescentes a levarem adiante a fé, a tradição e cultura da Coreia. “Esta Igreja está em São Paulo e aqui há todo tipo de povo. Não devemos esquecer a nossa identidade de católicos, e com todas as outras comunidades queremos viver o nosso tesouro da fé. Não esqueçam de professar a sua fé nesta cidade. Que a fé continue a ser expressada na língua, cultura e tradições coreanas. Agradeçam a seus pais e avós que lhes transmitiram a fé; afirmou.

“Aqueles que deixam sua pátria geralmente vão atrás do pão, do sustento, de uma vida tranquila. Os seus antepassados não esqueceram aquele outro pão. Também buscaram o Pão do Céu”, afirmou Dom Odilo, que ainda lembrou do testemunho missionário do povo coreano. “A Igreja de Jesus Cristo é missionária, isso significa que nós recebemos o Evangelho e levamos aos outros. Não seguramos para nós. A Igreja da Coreia é marcada por um grande heroísmo dos mártires. Eles perseveraram na fé mesmo quando tiveram que dar a vida”.

Como os primeiros cristãos

“Nossos antepassados coreanos vieram para cá com uma nova esperança na vida. Aquele período depois da Guerra da Coreia havia muitos pobres, faltavam muitas coisas”, contou Dom Lázaro ao O SÃO PAULO, ressaltando o árduo trabalho dos primeiros imigrantes coreanos. O Bispo afirmou, ainda, que os imigrantes puderam viver experiência semelhante a dos primeiros cristãos leigos que levaram o catolicismo para a Coreia. “Eles, sem ter nada, buscaram participar da missa, ter uma igreja própria, tiveram o mesmo ardor daqueles que começaram a Igreja na Coreia”.

Representando os grupos de jovens da Paróquia, Isaac Ko destacou que esse era um dia especial para todos eles. ‘‘Além de sermos gratos a Deus por tudo o que temos, relembramos os caminhos, obstáculos, conquistas dos nossos avós e pais nesses 50 anos. Vivemos em um mundo cheio de desigualdade e injustiça e hoje, mais do que nunca, os jovens têm um papel fundamental na construção de um futuro melhor, com mais oportunidades, valores e respeito”.

Após a celebração, houve apresentações culturais e gincanas entre os adolescentes e jovens. No domingo, 2, toda a comunidade se reuniu para uma missa solene presidida por Dom Lázaro, em língua coreana.

Fernando Geronazzo

Imigração coreana em São Paulo

“Na capital paulista, o ponto de referência em termos de moradia para os primeiros coreanos foi a ‘Vila Coreana’, no bairro da Liberdade, tradicional reduto de japoneses em São Paulo. Tratava-se de uma zona relativamente central e pouco valorizada, onde se praticavam aluguéis relativamente baratos. A localização dos coreanos no seio do bairro dos japoneses significava facilidades tanto em termos de comunicação quanto no que se refere a usufruir dos benefícios de se passar por anônimo, misturando-se a uma comunidade mais antiga e já adaptada na década de 1960. Esse último ponto foi muito importante para atenuar possíveis choques culturais. Apesar de se tratar de uma imigração bastante recente, a sociedade paulista já se encontrava há muito habituada com a imagem de asiáticos, sobretudo de japoneses. Para grande parte dos que se estabeleceram na Vila Coreana, o trabalho disponível foi ou a confecção, ou sair com uma mala repleta de mercadorias para mascatear roupas e outros produtos baratos. A maior parte dos coreanos aqui chegados jamais havia operado no ramo de confecções antes de sua chegada a São Paulo. Contudo, as atividades de costura eram abraçadas pelos recém-chegados graças à pouca necessidade de capital (muitas fábricas de tecidos concediam prazos dilatados para pagamento das mercadorias retiradas), ao risco pequeno e à possibilidade de empregar toda a família.

Outro fator se refere à estrutura de acolhimento que a comunidade oferece para facilitar a inserção dos imigrantes no novo País. A esse respeito, as instituições mais notáveis, que desempenham papéis de maior relevância, são as igrejas, pontos de condensação de toda uma rede intracomunitária de sociabilidade e solidariedade. De modo geral, as famílias coreanas não deixam de frequentar alguma igreja, protestante ou católica.

As igrejas constituem, naquele contexto, o local por excelência de contato para diversas experiências: funcionam tanto como estrutura de recepção para recém-chegados quanto como ponto de agregação para os já estabelecidos. Ali discutem-se oportunidades de trabalho e negócios favoráveis, trocam-se notícias da Coreia e de parentes distantes, cultivam-se novas amizades, ensinam-se tanto a cultura, a história e a língua do país de origem quanto a língua do novo país; organizam-se torneios esportivos e outras atividades de lazer; discute-se a educação dos filhos, arranjam-se parceiros para casamentos, e os mais velhos encontram-se para trocar impressões a respeito da vida no novo país. As igrejas cumprem, portanto, uma espécie de papel mediador entre a cultura original e a adquirida”

(Trecho do artigo “Etnias em convívio: o bairro
do Bom Retiro em São Paulo; de Oswaldo Truzzi,
publicado no site da Fundação Getúlio Vargas).