Por Filipe Domingues

Envelhecida, abatida, desestimulada, desconfiada, solitária, consumista, individualista. São características nada desejáveis em uma pessoa, muito menos em toda uma sociedade. Foram essas algumas das palavras que o Papa Francisco usou para descrever a Europa atual, em um forte discurso pronunciado no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, na França, na terça-feira, 25. Pela primeira vez, Francisco falou aos 751 deputados europeus que representam cerca de 500 milhões de habitantes de 28 países. O contexto hoje é completamente diferente daquela visita de João Paulo II, em 1988, quando o mundo estava dividido entre capitalismo e socialismo. Mas o Papa não poupou críticas ao atual estilo de vida e às políticas públicas europeias. Porém, no fundo, acredita o Pontífice, existe a esperança.
“A partir de minha vocação de pastor, desejo direcionar a todos os cidadãos europeus uma mensagem de esperança e encorajamento”, declarou, logo no início de sua fala. Para o Papa Francisco, a Europa abandonou no meio do caminho os valores de seus “pais fundadores”, aqueles líderes políticos que desde o fim da Segunda Guerra Mundial começaram a promover a “união” dos países do continente – que viria, em 1992, a se formalizar com o nome de União Europeia. Eles visavam a “um futuro baseado na capacidade de trabalhar juntos para superar as divisões e favorecer a paz e a comunhão entre todos os povos do continente”, recordou o Papa Francisco. “Ao centro desse ambicioso projeto político, estava a confiança no homem, não tanto como cidadão nem como sujeito econômico, mas como pessoa dotada de uma dignidade transcendente.”
Pessoa ou objeto?
É aí que, para Francisco, mora o problema: colocando a economia em primeiro lugar, a Europa esqueceu seus valores “humanistas”. O ser humano passou a ser tratado como objeto, “dos quais se podem programar a concepção, a configuração e a utilidade”. Para ele, é preciso voltar a promover a dignidade de cada pessoa. “Que dignidade existe quando falta a possibilidade de se exprimir livremente o próprio pensamento ou de se professar, sem coerção, a própria fé religiosa? Que dignidade é possível sem um marco jurídico claro, que limite o domínio da força e faça prevalecer a lei sobre a tirania do poder? Que dignidade pode jamais ter um homem ou uma mulher alvos de todo tipo de discriminação? Que dignidade poderá encontrar uma pessoa que não tem alimento ou o mínimo essencial para viver e, pior ainda, que não tem o trabalho que lhe unge de dignidade?”
Segundo o Papa, aqueles ideais que um dia inspiraram a Europa parecem ter perdido força, “em favor de tecnicismos burocráticos de suas instituições”. O egoísmo faz com que a pobreza seja ignorada. O ser humano “corre o risco de ser reduzido a uma simples engrenagem de um mecanismo que o trata da mesma forma que um bem de consumo a se utilizar”. Assim, no que chamou de uma “cultura do descarte”, a vida deve ser funcional ou acaba sendo descartada sem hesitação: “Como nos casos dos doentes terminais, dos idosos abandonados e sem cuidados, ou das crianças assassinadas antes de nascer.”
Desocupação e migração
O Bispo de Roma não poupou censuras quando citou dois dos problemas mais polêmicos na Europa atual, que se refletem em todo o mundo: o desemprego e a migração. Com a acentuada crise econômica, muitos europeus não têm trabalho e dependem de assistência social para viver – a pobreza aumenta e o desemprego chega a superar 40% da população jovem em alguns países. “É tempo de favorecer políticas de ocupação, mas, sobretudo, é necessário dar novamente dignidade ao trabalho”, reclamou Francisco. No tema das migrações, ele pediu que os homens e as mulheres estrangeiros que chegam à Europa sejam acolhidos e auxiliados. “Não podemos deixar que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério!”, lamentou, referindo-se às milhares de pessoas que acabaram morrendo em embarcações superlotadas a caminho da Europa.
O princípio é o ser humano
A mensagem de esperança do Papa Francisco aos europeus é a de que possam redescobrir a relação entre duas dimensões inseparáveis: o céu e a terra. “O céu indica a abertura ao transcendente, a Deus, que desde sempre caracterizou o homem europeu, e a terra representa a sua capacidade prática e concreta de enfrentar as situações e os problemas”, explicou. Em outras palavras, para o Papa, é preciso que a Europa retome a centralidade da pessoa humana. “Chegou a hora de construirmos juntos a Europa que não gira ao redor da economia, mas ao redor da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis; a Europa que abraça com coragem o seu passado e olha com fé o futuro para viver plenamente e com esperança o seu presente.”
Repercussão
O discurso foi aplaudido por dez vezes pelos parlamentares, especialmente ao final, e teve grande impacto na imprensa, no ambiente eclesiástico e entre políticos europeus. No mesmo dia, o Papa falou ao Conselho Europeu, órgão que reúne chefes de Estado e de governo dos países da União Europeia, detalhando pontos apresentados no Parlamento. Pediu “unidade na diversidade”, atenção ao meio ambiente, um esforço maior pela paz.
O Papa disse que, apesar dos pecados de seus filhos, a Igreja é uma “especialista em humanidade” – como definiu certa vez o Papa Paulo VI – e colocou-se à disposição para colaborar. “Não buscamos nada mais do que servir e testemunhar a verdade. Nada mais do que esse espírito nos guia ao sustentar o caminho da humanidade.” De fato, o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, que acolheu o Papa em nome dos deputados, comentou que o continente vive uma crise dramática, que “os cidadãos perderam a confiança nas instituições nacionais e internacionais”, mas que a Igreja busca promover valores parecidos àqueles da União Europeia, como respeito, solidariedade e paz, e enfrenta desafios parecidos, como o da distribuição das riquezas. “Papa Francisco, suas palavras têm uma importância enorme. Para todos nós, são temas universais. Suas palavras oferecem orientação em tempos de grande desorientação”, declarou Schulz.