De quem é a culpa?

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Publicado em: 24/03/2015 - 11:00
Créditos: Jornal O SÃO PAULO – Edição 3043

Por Edcarlos Bispo e Nayá Fernandes

Ações conjuntas e bem planejadas podem minimizar crise hídrica

Notícias dão conta que, com as famosas “águas de março”, o Sistema Cantareira já atingiu a marca de 15%. Oxalá continue chovendo e os níveis dos reservatórios que abastecem a cidade sigam crescendo. Mas a crise hídrica que assustou o Estado de São Paulo – e ainda assusta – é somente fruto da falta de chuvas ou de falhas na gestão?

O estudo da pesquisadora Micheli Kowalczuk Machado, especialista em Educação Ambiental, mestre e doutora em Ecologia Aplicada, permitiu constatar que a atual situação do Sistema é um problema de governança, acentuado pelas questões climáticas e por sua realidade socioambiental. Falta de articulação e diálogo também contribuíram com o colapso do Cantareira.

“Neste sentido, o que posso dizer é que a falta de governança com certeza colabora para a falta de água em São Paulo, tendo em vista que falta muita articulação entre os organismos presentes na área do Sistema Cantareira, tais como Conselhos de Unidades de Conservação e os Comitês de Bacias Hidrográficas, pois se os mesmos estivessem realizando ações conjuntas e bem planejadas esses problemas poderiam ser minimizados. Um exemplo seria a proteção/preservação das áreas ciliares que são fundamentais para a garantia de qualidade e quantidade de água, e são ações de longo prazo que já deveriam ter sido realizadas há muito tempo”, afirmou a pesquisadora em entrevista ao O SÃO PAULO.

Além disso, para Micheli falta articulação entre os governos, comitês, conselhos e demais grupos que gerem a questão da água no Estado. O que salienta a falta de “governança” – no sentido de saber articular as diversas frentes de atuação. “Pensando na realidade do Sistema Cantareira e no que pode ser exemplo para outras regiões do Estado e do País, temos em uma mesma localidade organismos e instituições governamentais e não governamentais com atuações sobrepostas, mas não articuladas. De um lado, essa realidade poderia ser muito promissora diante da diversidade de atores, percepções e ações que poderiam colaborar para a compreensão da complexidade que a questão hídrica envolve, e também para a implantação de programas que consideram esta complexidade e não se tornem apenas medidas paliativas de curto prazo. De outro lado, essa sobreposição apresenta apenas várias ações desarticuladas, o que impede que a governança na área do Sistema aconteça. Os organismos e instituições têm muita dificuldade de se articular dentro de sua própria estrutura, que dirá entre si e ainda mais com a população”, afirmou.

“A crise hídrica é um problema que está posto, faz parte da nossa realidade. Pensando nisso e considerando que não é a primeira vez e nem a última que teremos quadros como este, já está mais do que na hora de investir em ações a longo prazo como, por exemplo, a recuperação das áreas de proteção permanente, planejamento urbano, sistemas de tratamento de água e esgoto para garantir a qualidade e disponibilidade hídrica, melhorar a eficiência da distribuição de água, já que uma quantidade enorme deste recurso é perdida, sistemas de reuso de água em empresas, na agricultura e residências, educação ambiental constante e permanente etc”, concluiu.

E o saneamento básico no Brasil, como está?

“Quando você tem um cenário com água limitada ao consumo é preciso buscar novas fontes; as ideias até agora são de transposições de rios de outros Estados ou do interior para trazer água à Região Metropolitana de São Paulo. No entanto, a pergunta que fica no ar é: adianta trazer novas águas uma vez que a mesma irá virar esgoto em 5 minutos? O que iremos fazer com mais esgotos gerados? Iremos continuar a despejar sem tratamento nos rios, córregos e outros afluentes? É um tema um tanto quanto preocupante. A cidade de São Paulo trata metade do esgoto, Guarulhos trata 25%, a região do ABC, exceto São Caetano, trata menos de 35% dos esgotos e por aí vai. Ou seja, as grandes cidades não estão fazendo o seu papel e iremos trazer mais água que em minutos se resultará em novos esgotos”, afirmou o presidente executivo do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos.

Para ele, o reflexo do descaso dos poderes públicos com o saneamento básico é “bem visível”. A cidade tem dezenas de rios inacessíveis para uso humano direto, e até mesmo algumas represas da Região Metropolitana de São Paulo estão inviáveis por terem uma concentração de esgotos sem tratamento, como a Guarapiranga e a Billings. “Há também os indicadores de perdas de água na distribuição. O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) aponta 37% de perdas de água produzida no País, isto é, para cada 10 litros produzidos, 3,7 vão embora devido aos vazamentos, erros de medição e furtos, os famosos ‘gatos’. Talvez essa falta de saneamento reflita na falta de gestão por parte das prefeituras e do Governo do Estado, que fizeram vista grossa para a agenda hídrica”, afirmou.

Para cada monocultura, múltiplas consequências

São 300 mil hectares recobertos com o monocultivo de eucalipto só no Vale do Paraíba, em São Paulo. No Brasil todo, a produção chega a mais de 5 milhões de hectares, ficando atrás apenas da Índia, na escala mundial.

“Em meio aos estéreis eucaliptais, cultivados por grandes papeleiras para produção de celulose, a maior parte delas exportada para os Estados Unidos, Europa e China, inexiste ciclo de vida, pois animal algum conseguiria estabelecer habitat no seio de uma plantação de árvores clonadas que não geram alimento e que são cortadas de cinco em cinco anos”, explicou o defensor público de São Paulo, Wagner Giron De La Torre.

Além de impactar diretamente qualquer ecossistema e colocar em risco de extinção muitas espécies vegetais e animais, o monocultivo faz do Brasil campeão mundial na incidência de agrotóxicos, abarcando 18% do mercado mundial, com descarte, no solo, de 780 mil toneladas a cada ano.

“Estima-se que, em média, cada árvore de eucalipto absorva cerca de 30 litros de água potável ao dia, gerando um desequilíbrio hídrico sem precedentes”, alertou Wagner, ao ressaltar também que até hoje, no Estado de São Paulo, não se consolidou nenhum mecanismo de controle dos danos socioambientais de uma atividade industrial tão impactante.

 

Não chove mais como antes. Por quê?

Na prática, veem-se as consequências da estiagem em São Paulo, quando não há mais água nas torneiras e as notícias nos jornais anunciam os níveis cada vez mais baixos no principal sistema de abastecimento da cidade. Mas, ao se pensar num processo de diminuição das chuvas, é preciso refletir sobre as causas, para que sejam tomadas medidas de prevenção.
 
Em novembro de 2014, em entrevista ao Correio da Cidadania, Marzeni Pereira, tecnólogo em saneamento da Sabesp, lembrou que a estiagem em São Paulo tem relação com o desmatamento da Amazônia e do Cerrado. “Obviamente, sempre que há desmatamento se reduz a evaporação de água pela evapotranspiração das árvores”, afirmou. 
 
O Cerrado brasileiro sofreu muito com a devastação promovida pelo agronegócio. É importante lembrar que o Cerrado é um bioma que não pode ser reflorestado e que o Novo Código Florestal, aprovado com controvérsias no fim de 2012, em vias de cumprimento, não fortaleceu as tentativas de preservação do mesmo. A questão se agrava quando o assunto é a preservação da Amazônia, que se vê desnudada pelo avanço do agronegócio.
Se a preservação da Amazônia é importante para o equilíbrio do ecossistema em nível mundial, imagina o que o desmatamento pode causar dentro do próprio País. Marzeni falou também que somente “no ano passado [2013], em torno somente de soja, carne, milho e café, o Brasil exportou cerca de 200 bilhões de m³ de água. Significa abastecer São Paulo por quase 100 anos. A umidade atmosférica, mantida através dos chamados ‘rios voadores’, que vêm do Norte do Brasil e precisam da continuidade da vegetação, foi reduzida. E teve também o desmatamento de todo o centro-oeste do Estado”.
 
Além disso, é importante lembrar o que em qualquer classe de geografia aprende-se sobre a preservação das matas ciliares, dos mananciais e das nascentes dos rios: “Recuperar mananciais é outro ponto importante. Se isso não for feito, as consequências futuras podem ser mais graves. O Rodoanel passou pelos mananciais, o que mostra como não se deu importância a eles. Pessoas que moram em áreas de mananciais precisam sair de lá, através de negociações sérias, com plano habitacional. A redução das matas ciliares dos rios que abastecem as represas é outro fator, pois provoca o assoreamento e um secamento mais rápido”, ressaltou Marzeni.
 
E para quem acredita que o grande vilão é o cidadão que escova os dentes com a torneira aberta ou toma banhos demorados, os números indicam que no Brasil, 70% da água é consumida pela agricultura, 22% pela indústria e 8% pelas residências, segundo informações da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Claro que isso não significa o descuido individual, mas é importante alargar a discussão e pensar nos macro gastos provenientes dessas atividades. 
 

Atitudes voltadas para a redução do desperdício e para o controle da poluição da água*

1. Para reduzir o desperdício de água:
• Diminuir o desperdício de água na produção agrícola e industrial, a partir do controle dos volumes utilizados nos processos industriais, da introdução de técnicas de reuso de água e da utilização de equipamentos e novos métodos de irrigação;
• Reduzir o consumo doméstico de água a partir da incorporação do conceito de consumo sustentável;
• Reduzir o desperdício de água tratada nos sistemas de abastecimento de água, recuperando os sistemas antigos e introduzindo medidas de manejo.

2. Para reduzir a poluição decorrente das atividades agrícolas:
• Reduzir o uso de agrotóxicos e fertilizantes na agricultura;
• Implantar medidas de controle de erosão de solos e de redução dos processos de assoreamento de corpos de água, tanto em nível urbano como rural.

3. Para reduzir a poluição das águas:
• Apoiar iniciativas que visem implantação de sistemas de tratamento de esgotos, como forma de reduzir a contaminação da água;
• Exigir que o município faça o tratamento adequado dos resíduos;
• Organizar-se. Os consumidores organizados podem pressionar as empresas para que produzam detergentes, produtos de limpeza e embalagens que causem menores impactos ambientais.
* Elaborado pela Organização
das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação (FAO).

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