Tributo a Bento XVI

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14/01/2023 - 09:45

O funeral de Bento XVI, no dia 5 de janeiro passado, ocorreu com nobre simplicidade, como ele próprio desejou. Ficarão gravadas na memória imagens expressivas da cerimônia, como o caixão pousado no chão, à frente do altar na Praça de São Pedro; o livro dos Evangelhos, aberto, sobre o esquife; a cor vermelha dos paramentos litúrgicos, como sinal da vida doada por amor a Deus e à humanidade; o papa Francisco emocionado, pousando a mão longamente sobre o caixão, antes que este fosse levado ao interior da basílica para o sepultamento no mesmo túmulo, que também já recebeu o corpo de São João Paulo II. Tudo simples, essencial e significativo.

Ainda jovem teólogo, mas já apreciado e respeitado, Bento XVI foi assessor do cardeal Joseph Frings, de Colônia, durante o Concílio Vaticano II em 1962. Por longos anos, tornou-se um dos intérpretes mais autorizados do concílio, como teólogo, bispo e papa. Defendeu sempre, com firmeza, que o concílio não foi uma ruptura com o passado da Igreja, mas o reencontro com a sua essência e a busca de renovação, levando em conta o patrimônio espiritual e doutrinal e a experiência quase bimilenar da vida eclesial. Depois do concílio, a Igreja Católica segue a mesma, mas renovada e em busca de constante fidelidade a Jesus Cristo, seu Fundador, e à missão recebida dele.

No pontificado de São João Paulo II (1978), Joseph Ratzinger foi um dos principais colaboradores do papa, no Dicastério para a Doutrina da Fé, cargo particularmente difícil e delicado pela missão de manter a unidade e a coerência do ensinamento da fé e da moral da Igreja. O período pós-conciliar foi rico de novas expressões teológicas, que tentaram adentrar as portas abertas pelo concílio. Nem todas as novas propostas teológicas eram coerentes com a fé e a herança da vida cristã. Ratzinger teve o papel ingrato de chamar a atenção e corrigir alguns ensinamentos dissonantes com o patrimônio da fé da Igreja, e isso lhe atraiu muitas críticas.

Em 2005, aos 78 anos de idade, Ratzinger foi eleito sucessor de S. João Paulo II. Na sua primeira fala ao povo reunido na Praça de São Pedro, Bento XVI não escondeu sua surpresa com a escolha, dizendo ser apenas “um humilde servo da vinha do Senhor”, fazendo alusão aos operários da parábola do Evangelho contratados já quase no final da jornada de trabalho (cf. Mateus, 20,6-7). Em seu pontificado, evidenciou o centro da fé cristã e da vida da Igreja: a verdade sobre Deus, Jesus Cristo e o homem. Suas homilias e alocuções eram profundas e simples ao mesmo tempo. Mesmo como papa, continuou a escrever obras teológicas, como a trilogia sobre Jesus de Nazaré. Agradava-lhe a reflexão acadêmica sobre questões atuais da filosofia e da teologia. Atencioso, afável e perspicaz, homem de vasta cultura teológica e humanista, Bento XVI identificou e compreendeu como poucos os problemas do nosso tempo e da Igreja.

No Brasil, recordaremos especialmente sua visita de maio de 2007, o encontro memorável com os jovens no Estádio do Pacaembu e com a multidão de peregrinos no Campo de Marte, onde elevou aos altares Frei Galvão, primeiro santo nascido no Brasil. Em seguida, em Aparecida, fez a abertura da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, oferecendo-lhe a direção decisiva. Esta ficou como um marco referencial para quem quer falar da atuação da Igreja Católica em nosso continente em nossos dias.

O pontificado de Bento XVI foi marcado por várias tribulações, como as denúncias de pedofilia no meio do clero, os problemas administrativos no Vaticano e certo ambiente de intrigas, que gerou a quebra de confiança no serviço interno da Santa Sé. Alguns até o acusaram de conivência com tais problemas, o que foi totalmente injusto. De fato, Bento XVI quis enfrentar e clarear essas situações, tomando as medidas necessárias, mas a governança da situação causou-lhe muitos sofrimentos e acabou por esgotar suas forças, levando-o à renúncia em fevereiro de 2013. Essa atitude gerou perplexidade em muitos, pois haviam passado seis séculos desde a última renúncia de um papa. Bento XVI tranquilizou a todos, lembrando que o papa é apenas “um humilde servo da vinha do Senhor”: a Igreja é de Jesus Cristo e o Espírito Santo a conduz. E exortou todos à oração e à confiança.

Saído de cena, Bento XVI permaneceu recolhido num convento, dentro do Vaticano, em oração e em união com seu sucessor. A quem quis contrapô-lo a Francisco, Bento declarou: “Meu papa agora é Francisco”. E não faltou a veneração e o respeito de Francisco por seu predecessor, até o fim, como fez com o gesto silencioso e eloquente da mão pousada sobre o esquife de Bento XVI, antes do sepultamento.

Bento XVI passará para a História como papa teólogo. Seus escritos e alocuções são iluminados e profundos, sem deixar de serem acessíveis. No funeral, Francisco disse que Bento XVI dedicou sua vida inteira a indicar o centro e a essência da fé cristã e da vida e missão da Igreja: Jesus Cristo, caminho, verdade e vida, também para o homem do nosso tempo.

Cardeal Odilo Pedro Scherer 

Arcebispo Metropolitano de São Paulo 

Publicado no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 14 de janeiro de 2023