Patrimônio da humanidade - Cardeal Lorenzo Baldisseri

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<p>O cardeal Baldisseri acerca dos conteúdos da próxima assembleia extraordinária do Sínodo sobre a família</p>
Publicado em: 05/08/2014 - 15:45
Créditos: L´Osservatore Romano Ed nº 29

Foi como se tivesse sido desenhada a imagem-tipo da família, com todas as suas luzes e todas as suas sombras, pronta para ser retocada de modo a poder entrar legitimamente a fazer parte dos tesouros que devem ser defendidos a nível universal, como patrimônio da humanidade. É o conteúdo do Instrumentum laboris, documento que os padres sinodais utilizarão na próxima assembleia extraordinária de Outubro. Caberá a eles evidenciar os claros e os escuros, as figuras pouco nítidas, as imperfeições e os retoques a serem feitos. Caberá a eles focalizar a luz sobre as problemáticas atuais, sem se deixar condicionar pela pressão midiática privilegiando alguns aspectos em detrimento de outros. O trabalho que os espera é notável, as expectativas também, porque a Igreja, mas inclusive as outras religiões, os Estados e as sociedades esperam respostas sobre o tema da família. Destas situações fala o cardeal Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do Sínodo dos bispos, numa entrevista concedida ao jornal L’Osservatore Romano de 17 de julho 2014.

O papa Francisco observou várias vezes que existe o risco de que a opinião pública seja induzida a considerar o Sínodo como um debate sobre os divorciados e os recasados. O que se pode fazer para restabelecer a ótica correta?
Estou convicto de que a publicação do Instrumentum laboris favorecerá a correta colocação do tema ao qual nos referimos. De fato, da leitura do texto intui-se que a assembleia especial do próximo mês de outubro tratará a família na sua complexidade e urgência, enfrentando todos os aspectos que lhe dizem respeito, citados no documento, o qual contem as respostas às 38 perguntas do questionário distribuído naquela altura aos episcopados e às instituições de direito. Gostaria de recordar que o documento se compõe de três partes, com respectivos capítulos, subdivididos em 159 números, entre os quais só alguns se ocupam do tema sobre o qual o senhor fala. A progressiva atenção à vastidão da temática familiar que se desenvolve organicamente no documento trará compreensão e clareza para todos e diminuirá a tendência, inclusive a nível mediático, a privilegiar alguns aspectos em relação a outros. Devemos ter presente sobretudo que os vários temas estão estreitamente ligados entre si e para que haja um sadio e correto entendimento, estudo e, eventualmente, um ponto de resolução devem ser considerados nos seu conjunto e em igual medida.

O Papa Francisco advertiu também sobre a proposta de um modelo exclusivamente ocidental da família como valido para o mundo inteiro. É um risco efetivo? Caso seja, poder-se-ia evitá-lo?
Não tem duvida de que a fé cristã é transmitida com as vestes da cultura ocidental e médio-oriental, embora sabendo que a encarnação aconteceu num tempo e num espaço precisos. Todavia, como o Papa Francisco disse na Evangelii gaudium no número 117: <<Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural>>. Então o panorama mundial da família que sobressai da pesquisa, apresentada no documento, abre horizontes de transmissão do Evangelho da família que serão úteis para a reflexão no próximo Sínodo. Os padres sinodais, com base nas informações e sugestões que dele emergem, sentir-se-ão mais capazes e motivados para responder aos desafios em questão, e far-lo-ão com propostas culturalmente diversificadas, seguindo o ensinamento e a disciplina da Igreja. De fato, foram convidados a preparar desde agora as intervenções a ser pronunciadas na sala na próxima assembleia, como expressão da experiência de fé inculturada na própria Conferencia episcopal, e a contribuir na assembleia com plena liberdade de palavra para formular propostas pastorais maduras e adequadas ao delicado tema da família.

Em que medida o Instrumentum laboris poderá ajudar nesta tarefa?
Em primeiro lugar gostaria de confirmar que o Instrumentum laboris, como indica a expressão, é um documento-base para os trabalhos do sínodo. Não é um documento magisterial, uma exposição doutrinal nem pastoral sobre o tema em questão. É a síntese elaborada de dados, informações, sugestões, vida vivida, experiências individuais, comunitárias, pastorais, da realidade objetiva da família hoje com as suas luzes e sombras. Esta elaboração apresenta o status atual da família nos seus múltiplos aspectos, que serão ulteriormente integrados por outros na segunda etapa do caminho sinodal que se concluirá com a assembleia geral ordinária de 2015. Cabe aos Padres sinodais examinar, estudar, confrontar esta realidade e compará-la com o ensinamento e a disciplina da Igreja que, aliás, estão bem descritos na primeira parte do documento, e indicar novos ou renovados caminhos pastorais para responder aos desafios indicados. Em segundo lugar, acerca do risco de propor um modelo ocidental da família, uma elaboração correta da temática sinodal, que começa a partir do que é certo e seguro para proceder rumo ao que não é ainda conhecido nem explorado, será a resposta adequada. Para caminhar não são necessários dois pés? Pois bem, para ir em frente só se levanta um pé quando temos a certeza de que o outro está bem firme no chão. Na minha opinião, este é o modo sinodal de proceder. Caminhar rumo à descoberta de novas formas e experiências sem abandonar nada do que sabemos que é certo, seguro e válido. A nível planetário é tarefa da Igreja, como fez ao longo dos séculos, inculturar a fé. Não faltam documentos a este propósito, como por exemplo a encíclica Redemptoris missio de João Paulo II, que indica os critérios deste procedimento. A assembleia sinodal reúne pessoas provenientes de todas as culturas e tradições do planeta e estou convicto de que haverá uma contribuição considerável a este propósito, a fim de exprimir do melhor modo o Evangelho da família com as suas influências profícuas na teologia e na disciplina.

Pode a família tornar-se objeto do diálogo entre as religiões?
A família é um tema que interessa a todos, pessoas e instituições. Igrejas, confissões religiosas, sociedades, Estado. A presença dos delegados fraternos na assembleia do Sínodo manifesta claramente que a família se tornará objeto de diálogo ecumênico e inter-religioso. Temas, como os matrimônios mistos, a família e a lei natural, a ideologia do <<gender>>, são de interesse comum e certamente serão tratados devidamente.

Quais são as perspectivas para os casais de fato?
Este tema faz parte das situações familiares difíceis, enumeradas no documento, que resultam em aumento nos países ocidentais, com repercussões também noutros continentes. A este fenômeno associa-se o das convivências entre os jovens, como consequência da crise profunda de valores, a percepção do amor como fato particular, o vínculo matrimonial como perda da liberdade pessoal, o matrimônio como decisão demasiada comprometida. Tudo isto agravado pela incidência de fatores externos como a crise econômica e as políticas dos Estados que não ajudam, aliás, penalizam quantos desejam formar uma família pela falta de trabalho, a incerteza de o manter, os salários baixos, a precariedade da assistência médica, o problema da casa, além de certos meios de comunicação e social networks que propõem antimodelos, valores incorretos e desviantes.

Das respostas ao questionário é possível intuir qual é a atenção que o mundo religioso reserva à família?
É de grau elevado, diria de primeira grandeza, no sentido que se releva o interesse e a grande estima pela família cristã e pelo seu significado em si e em relação à Igreja e à sociedade, com os relativos desafios. Prova disto é o acolhimento do questionário, que foi de máximo relevo e suscitou uma inesperada resposta coral de todas as partes. De fato, a reação foi imediata, direta, ampla, quer da parte de quantos quiseram exprimir o próprio testemunho acerca da beleza e dos valores da família cristã para a sociedade hoje, quer de quantos relevaram os seus desafios e problemas. O aspecto positivo é que o anúncio do Evangelho da família foi apresentado abundantemente na primeira parte do documento, portanto digno de ser lido com a atenção devida, para frisar o fato de que os católicos no mundo sentem profundamente o valor cristão da família, como sinal e modelo para todas as famílias. O aspecto dos desafios e das problemáticas está descrito na segunda parte do documento, que enfrenta organicamente os temas relativos à pastoral atual da família, as situações familiares difíceis, as uniões do mesmo sexo. São relevantes a crise de fé, as situações críticas internas nas famílias, como a violências e os abusos, e externas, como as guerras, as migrações e as pobrezas; depois as convivências, os casais de fato, as falências com as situações dos separados, divorciados e divorciados recasados, os filhos de tais uniões e as mães solteiras. Diante destes dramas familiares, com vítimas e feridos que fazem pensar na imagem do <<hospital de guerra>>, a Igreja é chamada a inclinar-se e a cuidar disto, embora a sua tarefa primária permaneça o anúncio do Evangelho da família e da beleza da vocação ao amor, grande potencial também para a sociedade. A abertura à vida e à responsabilidade educativa são os temas da terceira parte do documento, como perspectiva e desafio pastoral, no qual estão mencionadas as dificuldades, evidenciam-se as iniciativas pastorais em ato, realizam-se pesquisas e oferecem-se propostas.

Não se corre o risco de considerar a pastoral familiar um instrumento legalista?
A pastoral em geral, e muito menos a familiar, não pode ser um instrumento legalista pela sua própria natureza de concreta aplicação do ensinamento e da disciplina da Igreja, que não se reduz à casuística. Ao contrário, é a expressão verdadeira da fé, que se manifesta em gestos, os sacramentos, e em palavras, a pregação, efetuados com as pessoas e na comunidade. O Instrumentum laboris  leva ao conhecimento destas realidades pastorais em ato sobre a família, e interroga todos acerca do modo como anunciar hoje o Evangelho e não só da família. A homilia, a pregação, a catequese, a linguagem são elementos pastorais de transmissão da fé, que nada têm a ver com o legalismo. Ao contrario, são instrumentos necessários para o anúncio e para a ação pastoral da Igreja. A abordagem e o modo como hoje a Igreja deve anunciar o Evangelho são relevantes na Evangelii gaudium, na qual o Papa Francisco ao referir-se à homilia diz que os pregadores sabem o que devem dizer, mas descuidam o modo como o fazer, indicando o risco de se habituar à própria linguagem, com frequência técnica e pouco compreensível. Para a catequese é importante o papel fundamental do primeiro anúncio, o querigma, a fim de que, como dizia Hugo Rahner, a teologia para nós não seja só ciência, mas essencialmente anúncio-salvação.