A memória no caminho da paz

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Em visita à Armênia, entre os dias 24 e 26, o Papa Francisco recordou o genocídio armênio e defendeu a paz.
Publicado em: 30/06/2016 - 14:00
Créditos: Redação com Jornal O SÃO PAULO

Por Filipe Domingues
Especial para o SÃO PAULO, em Roma

“A memória não deve ser diluída nem esquecida. A memória é fonte de paz e de futuro”, escreveu o Papa Francisco, em mensagem que deixou no sábado, 25, no memorial do genocídio armênio, o Tzitzernakaberd Memorial Complex, em Erevan.

O local recorda as vítimas armênias assassinadas pelo Império Turco Otomano, em perseguição que visava ao extermínio do povo e da cultura armênia, matando pelo menos 1,5 milhão de pessoas entre 1915 e 1922. A tragédia, que os armênios chamam de Metz Yeghern, isto é, o “Grande Mal”, é reconhecida por 26 países como o primeiro genocídio do século XX, inclusive pelo Vaticano. A Turquia herdou a tradição otomana e ainda hoje nega que a tragédia constitua um genocídio. Não reconhece o massacre armênio como uma mancha em sua história, mas como um dos eventos da 1ª Guerra Mundial.

Recordar o passado, no entanto, é essencial para se promover vias de reconciliação. Foi essa a mensagem que guiou toda a viagem do Papa Francisco à Armênia, entre 24 e 26 de junho. “A memória, permeada pelo amor, torna-se capaz de caminhar por trilhas novas e surpreendentes, onde as tramas de ódio se transformam em projetos de paz e reconciliação, onde se pode esperar um amanhã melhor para todos, onde são ‘bem-aventurados os operadores de paz’”, declarou o Pontífice em encontro ecumênico pela paz, realizado junto com cristãos da Igreja Apostólica Armênia, de linhagem ortodoxa. A promoção da unidade dos cristãos foi também um dos pontos importantes da viagem.

A memória, portanto, não deve ser preservada para se chegar à vingança. Pelo contrário, avalia o Papa, deve ser o combustível para esforços de misericórdia e de pacificação. “Fará bem a todos empenhar-se para criar as bases de um futuro que não se deixe absorver pela força enganadora da vingança. Um futuro que não se canse jamais de criar condições para a paz: um trabalho digno para todos, o cuidado aos mais necessitados, a luta sem trégua contra a corrupção, que deve ser extirpada”, acrescentou, na mesma ocasião.

A Armênia vive em guerra com o Azerbaijão, que o Papa deve visitar em setembro. A disputa pela região de Nagorny Karabakh envolve também apoio militar da Rússia e da Turquia, o que dificulta ainda mais uma reconciliação entre armênios e turcos. Porém, conforme explicou o vaticanista americano John Allen Jr, editor do site Crux, o Papa procurou aplicar uma verdadeira “política da memória” naquela parte do mundo, ainda marcada por amargas disputas de território e de influência política.

“O que Francisco deixa para trás na Armênia, e o que ele também vai tentar fazer na Geórgia e no Azerbaijão, é pelo menos uma nova forma de ver as memórias que tão frequentemente insensibilizam a região: não somente como uma ameaça, mas como um recurso”, escreveu Allen.

A palavra ‘genocídio’

Em seu encontro com autoridades civis e do corpo diplomático armênio no Palácio Presidencial, na sexta-feira, 24, o Papa Francisco referiu-se pela segunda vez ao massacre dos armênios como “genocídio”. A palavra, rejeitada pelos turcos, não estava prevista no discurso do Pontífice, cuidadosamente escrito com ajuda dos oficiais de diplomacia do Vaticano. Os discursos do Papa são distribuídos com antecedência aos jornalistas credenciados junto à Santa Sé, que só podem publicá-lo após o pronunciamento oficial. Dada a grande expectativa sobre a utilização da expressão “genocídio”, todos perceberam a adição improvisada por Francisco, marcada a seguir em itálico:

“Aquela tragédia, aquele genocídio, inaugurou infelizmente o triste elenco das imensas catástrofes do século passado, tornadas possíveis por aberrantes motivações raciais, ideológicas ou religiosas, que cobriram de trevas a mente dos algozes até ao ponto de terem como intuito aniquilar povos inteiros. Como é triste que, nesse caso, como nos outros dois, as grandes potências olhavam para o outro lado”, declarou.

Como era de se esperar, o vice-primeiro-ministro da Turquia, Nurettin Canikli, demonstrou “grande descontentamento” com a decisão do Papa e o acusou de manifestar traços de uma “mentalidade das Cruzadas”. Insistiu que seu País não vai levar a sério as falas sobre genocídio armênio. Já em abril de 2015, Francisco usou a palavra genocídio, pela primeira vez como Papa, em celebração pela memória das vítimas, no Vaticano. Ele citou um pensamento de São João Paulo II. A declaração levou a Turquia a protestar, convocando seu embaixador junto à Santa Sé.

O porta-voz do Vaticano, Padre Federico Lombardi, convidou o governo turco a rever melhor a mensagem do Papa, que “não tem espírito de Cruzadas”. Observou que a intenção de Francisco é sempre de construir. “Ele não diz nada contra o povo turco”, mas faz um convite ao diálogo e à reconciliação, comentou. “É importante que se compreenda que a memória, em uma perspectiva cristã, na perspectiva do Papa, é uma memória para curar as feridas, não para abri-las ou para renová-las. Mas recordando o mal, alguém aprende as lições da História, se converte dos comportamentos errados e vê tudo aquilo que deve fazer para construir reconciliação e paz no futuro.

O próprio Papa Francisco explicou o porquê da decisão de última hora, de acrescentar o uso da palavra genocídio em seu discurso. Em entrevista coletiva aos jornalistas presentes em seu avião de retorno a Roma (leia mais ao lado), respondeu que já usava a expressão como arcebispo de Buenos Aires e a manteve.

“Sempre falei de três genocídios do século passado. O primeiro, o armênio, depois aquele de Hitler, e o último aquele de Stalin. Há outros pequenos, há um na África (Ruanda), mas na órbita das duas grandes guerras são esses três”, disse à imprensa, justificando que nunca usou essa palavra com tom ofensivo, mas sempre objetivamente. “Mas, ali, eu queria destacar uma outra coisa, e creio que disse: neste genocídio, como nos outros dois, as grandes potências internacionais olhavam para outro lado. E foi essa a acusação.”

A jornalistas, Papa fala da visita à Armênia e de temas atuais da Igreja e da sociedade

No voo de retorno a Roma de sua viagem apostólica à Armênia, no domingo, 26, o Papa Francisco concedeu sua tradicional entrevista coletiva ao grupo de jornalistas que o acompanhou. O Santo Padre respondeu espontaneamente às questões e tocou em alguns temas que foram polemizados em vários veículos de comunicação pelo mundo.

O SÃO PAULO apresenta a seguir os principais trechos das palavras do Pontífice. A íntegra da entrevista (em português e no original italiano) está disponível no final desta página.

Armênia, sentimentos e impressões

“Almejo a este povo justiça e paz; e por isso rezo, porque é um povo corajoso. Rezo para que tenha a justiça e a paz. Sei que muitos trabalham para isso; ainda na semana passada, fiquei muito contente ao ver uma fotografia do presidente Putin [da Rússia] com os dois presidentes da Armênia e do Azerbaijão: pelo menos, falam-se. E também com a Turquia: o presidente da República [Armênia], no seu discurso de boas-vindas, falou claro. Teve a coragem de dizer: ‘Ponhamo-nos de acordo, perdoemo-nos e olhemos para o futuro’”.

O que pretende dizer ao governo de Azerbaijão sobre o conflito com a Armênia

“Aos azerbaijanos, falarei da verdade, daquilo que vi, daquilo que sinto. E também os encorajarei. Encontrei o presidente do Azerbaijão e falei com ele. E direi também que não fazer a paz por um pequeno pedaço de terra – porque não é uma grande coisa – esconde algo mais... Isso, porém, digo-o a todos: aos armênios e aos azerbaijanos. Talvez não se ponham de acordo sobre as modalidades de fazer a paz, e sobre isso há que se trabalhar. Não sei que mais possa dizer. Direi aquilo que na hora me vier ao coração, mas sempre de forma positiva, tentando encontrar soluções que sejam viáveis, que façam avançar”.

Genocídio?

“Na Argentina, quando se falava do extermínio armênio, usava-se sempre a palavra ‘genocídio’. Eu não conhecia outra. E na Catedral de Buenos Aires, no terceiro altar à esquerda, pusemos uma cruz de pedra em recordação do ‘genocídio armênio’. Veio o arcebispo, os dois arcebispos armênios – o católico e o apostólico – e inauguraram-na. Além disso, o arcebispo apostólico na Igreja Católica de São Bartolomeu – outra [igreja] – fez um altar em memória de São Bartolomeu [evangelizador da Armênia]. Sempre foi assim... eu não conhecia outra palavra. Eu venho com essa palavra. Quando chego a Roma, ouço a outra palavra: ‘o Grande Mal’ ou ‘a tragédia terrível’, em língua armênia Metz Yeghern, que não sei pronunciar. Dizem-me que a palavra genocídio é ofensiva, devendo-se dizer aquela. Eu sempre falei dos três genocídios do século passado, sempre três. O primeiro, o armênio; depois, o de Hitler; e, por último, o de Stalin. Os três. Há outros menores. Houve um em África [Ruanda]”.

Dois Papas?

“Bento é papa emérito. Ele disse claramente, naquele 11 de fevereiro [de 2013], que dava a sua demissão a partir de 28 de fevereiro, que se retiraria para ajudar a Igreja com a oração. E Bento está no mosteiro, e reza. (...) é o Papa emérito, é o ‘avô’ sábio, é o homem que me guarda os ombros e as costas com a sua oração. Nunca esqueço o discurso que nos fez [aos cardeais], em 28 de fevereiro: ‘Um de vós certamente será o meu sucessor. Prometo obediência’. E fê-lo. (…) Além disso, não sei se a senhora se lembra [dirigindo-se a uma jornalista], que agradeci publicamente – não sei quando, mas acho que foi durante um voo – a Bento XVI por ter aberto a porta aos papas eméritos. Há 70 anos, não havia os bispos eméritos; hoje existem. Mas, com este alongamento da vida, será possível a uma certa idade, com os achaques, dirigir uma Igreja ou não? E ele, com coragem – com coragem! – e com oração e também com ciência, com teologia, decidiu abrir esta porta. E creio que isso seja bom para a Igreja. Mas há apenas um papa. O outro ou... outros – como sucede com os bispos eméritos; não digo muitos, mas talvez possam ser dois ou três – serão eméritos”.

Avaliação sobre o Concílio Pan-Ortodoxo

“Foi dado um passo em frente: não 100%, mas um passo em frente. Os motivos que justificaram, entre aspas, [as ausências] são sinceros para eles; são coisas que, com o tempo, se podem resolver. Queriam – os quatro que não foram – fazê-lo um pouco mais tarde. Mas creio que o primeiro passo se dá como se pode. Como as crianças, quando dão o primeiro passo, fazem-no como podem: o primeiro, fazem-no como os gatos e, depois, dão os primeiros passos. Estou contente. Falaram sobre muitas coisas. Creio que o resultado é positivo. O simples fato de essas Igrejas autocéfalas estarem reunidas em nome da Ortodoxia, para se fixarem olhos nos olhos, para rezarem juntos e falarem e, talvez, dizerem alguma graça, isso é positivíssimo. Dou graças ao Senhor. No próximo, estarão mais. Bendito seja o Senhor!”
 
500 anos da Reforma

“Creio que as intenções de Martinho Lutero não foram erradas: era um reformador. Talvez alguns métodos não fossem justos, mas naquele tempo, se lermos por exemplo a história do Pastor (um luterano alemão que, ao ver a realidade daquele tempo, se converteu e fez católico), vemos que a Igreja não era propriamente um modelo a imitar: havia corrupção na Igreja, havia mundanidade, havia apego ao dinheiro e ao poder. E por isso, ele protestou. Sendo inteligente, deu um passo a frente justificando por que motivo fazia isso. E hoje luteranos e católicos, com todos os protestantes, estamos de acordo sobre a doutrina da justificação: sobre esse ponto tão importante, ele não errou. Elaborou um ‘remédio’ para a Igreja, depois esse remédio consolidou-se num estado de coisas, numa disciplina, num modo de crer, num modo de fazer, num modo litúrgico. Mas não era só ele: havia Zwingli, havia Calvino... E, por detrás deles, quem estava? Os princípes, ‘cuius regio eius religio’. Devemos mergulhar na história daquele tempo. É uma história não fácil de entender, não fácil. Depois as coisas foram avançando. Hoje, o diálogo é muito bom, e creio que aquele documento sobre a justificação seja um dos documentos ecumênicos mais ricos, mais ricos e mais profundos”.

Diaconisas
“Houve um presidente argentino que dizia e aconselhava aos presidentes de outros países: quando quiseres que uma coisa não se resolva, cria uma comissão! O primeiro a ficar surpreendido com essa notícia fui eu, porque no diálogo com as religiosas – que foi gravado e depois publicado no jornal ‘L’Osservatore Romano’ –, tratava-se de outra coisa, mais ou menos nesta linha: ‘Ouvimos dizer que, nos primeiros séculos, havia diaconisas. Pode-se estudar isso? Criar uma comissão?’ Nada mais...

Fizeram uma pergunta; foram educadas, e não só educadas, mas também amantes da Igreja, mulheres consagradas. Eu contei que conhecia um sírio, um teólogo sírio que morreu, aquele que fizera a edição crítica de Santo Efrém, em italiano. Quando eu vinha a Roma, hospedava-me na Via della Scrofa e ele vivia lá.

Uma vez, ao pequeno almoço, falando das diaconisas, disse-me ele: ‘Sim, mas não se sabe bem o que eram, se teriam a ordenação...’ Certamente, havia essas mulheres que ajudavam o bispo; e ajudavam-no em três coisas: a primeira, no Batismo das mulheres por imersão; a segunda, nas unções pré e pós-batismal das mulheres; e a terceira – esta dá para rir – quando a esposa ia lamentar-se ao bispo contra o marido que lhe batia, o bispo chamava uma dessas diaconisas para examinar o corpo da mulher vendo se havia contusões que provassem essas coisas. Eu contei isso. ‘E pode-se estudar?’ – ‘Sim, direi à [Congregação para a] Doutrina da Fé que se faça esta Comissão’.

No dia seguinte [nos jornais]: ‘A Igreja abre a porta às diaconisas’. Verdadeiramente, zanguei-me um pouco com os mass-media, porque isto é não dizer a verdade das coisas às pessoas. Falei com o prefeito da [Congregação para a] Doutrina da Fé, que me disse: ‘Olhe que há um estudo feito pela Comissão Teológica Internacional na década de 80’.

Depois, falei com a presidente [das Superioras Gerais] e disse-lhe: ‘Por favor, prepare-me uma lista de pessoas que a Irmã julgue que se possam convidar para fazer essa Comissão’. E enviou-me a lista. Também o Prefeito me enviou a lista, e agora estão lá, sobre a minha mesa, para se fazer essa Comissão. Julgo que o tema foi muito estudado na década de 1980, e não será difícil esclarecer o assunto.

Mas há outra coisa. Há um ano e meio, fiz uma comissão de mulheres teólogas que trabalharam com o Cardeal Rylko [Presidente do Pontifício Conselho para os Leigos]. Fizeram um bom trabalho, porque é muito importante o pensamento da mulher. Para mim, é mais importante o pensamento da mulher do que a função da mulher: a mulher pensa de maneira diferente de nós, homens. E não se pode tomar uma boa decisão, boa e justa, sem ouvir as mulheres”.

Respondendo à pergunta sobre homossexuais
“Repetirei a mesma coisa que disse na primeira viagem e repito também aquilo que afirma o Catecismo da Igreja Católica: não devem ser discriminados, mas devem ser respeitados, acompanhados pastoralmente. Podem-se condenar, não por motivos ideológicos, mas por motivos, digamos, de comportamento político, certas manifestações demasiado ofensivas para os outros. Mas essas coisas nada têm a ver com o problema: se uma pessoa tem essa condição, tem boa vontade e procura Deus, quem somos nós para julgá-la? Devemos acompanhá-la bem, de acordo com o que diz o Catecismo. É claro o Catecismo!”  

(Edição: Michelino Roberto e Fernando Geronazzo)

Confira a íntegra a entrevista coletiva do Santo Padre durante o voo de regresso da Armênia - Português

Confira a íntegra da entrevista coletiva do Santo Padre durante o voo de regresso da Armênia - Italiano

Reportagem Publicada no Jornal O SÃO PAULO  edição 3108 - 30 de junho  a 5 de julho de 2016