Dar o Sangue

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22/03/2017 - 10:45

     Conta-se que durante a guerra do Vietnã um orfanato dirigido por um grupo de missionários foi atingido por um bombardeio. Os missionários e duas crianças tiveram morte imediata e as restantes ficaram gravemente feridas. Entre elas, havia uma menina de 8 anos, em estado grave. Foi necessário chamar ajuda via rádio e, ao fim de algum tempo, um médico e uma enfermeira da Marinha dos Estados Unidos chegaram ao local. Teriam que agir rapidamente, pois a menina, devido aos traumatismos, perdera muito sangue. Era urgente uma transfusão, mas como fazer? Reuniram as crianças e, entre gesticulações, arranhadas no idioma, tentavam explicar o que estava acontecendo e que precisariam de um voluntário para doar sangue. Depois de um silêncio sepulcral, viu-se um braço magrinho levantar-se timidamente. Era um menino chamado Heng. Ele foi preparado às pressas ao lado da menina agonizante e espetaram-lhe uma agulha na veia. Ele se mantinha quieto e com o olhar no teto. Passado um momento, deixou escapar um soluço e tapou o rosto com a mão que estava livre. O médico lhe perguntou se estava doendo e ele negou. Mas não demorou muito a soluçar de novo, contendo as lágrimas. O médico ficou preocupado e voltou a lhe perguntar, e novamente ele negou. Os soluços ocasionais deram lugar a um choro silencioso e ininterrupto. Era evidente que alguma coisa estava errada. Foi então que apareceu uma enfermeira vietnamita vinda de outra aldeia. O médico pediu, então, que ela procurasse saber o que estava acontecendo com Heng.

     Com a voz meiga e doce, a enfermeira conversou com ele e explicou algumas coisas. Aos poucos, o rostinho do menino foi se aliviando... Minutos depois, ele estava novamente tranquilo. A enfermeira, então, explicou aos norte-americanos: “Ele pensou que ia morrer. Não tinha entendido direito o que vocês disseram, e achava que teria que doar todo o seu sangue para a menina não morrer”. Então, o médico se aproximou dele e, com a ajuda da enfermeira, perguntou: “Mas se era assim, por que, então, você se ofereceu para doar seu sangue?” O menino respondeu simplesmente: “Ela é minha amiga!” O pequeno Heng estava disposto a dar a sua vida pela amiga. Quem de nós seria capaz de fazer o mesmo? Será que conhecemos alguma pessoa amiga disposta a dar a vida por nós? Parece que não. Mas existe, sim, Jesus. Na véspera da sua morte, Ele mesmo prediz: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,16). Penso que esse episódio nos ajuda muito a entender a Paixão de Cristo, porque, de certo modo, foi exatamente isso que Jesus Cristo fez conosco. Ele derramou todo o seu sangue na Cruz, aceitando voluntariamente a sua morte, para evitar a situação lamentável das nossas almas, condenadas à morte eterna, pelo peso dos nossos pecados. São Paulo o explica: “É difícil que alguém queira morrer por uma pessoa justa... Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós, quando ainda éramos pecadores” (Rm 5, 7-8)

     Não sejamos indiferentes à Paixão de Cristo. Jesus, derramando seu sangue, nos oferece uma verdadeira purificação dos nossos pecados. Tudo o que sofreu durante a Paixão foi causado pelos meus pecados e os de todos os homens. Contemplar a Cruz de Jesus deve provocar a dor em nossos corações. Existe uma forma de aliviar o peso da Cruz de Cristo: decidir-nos a romper com os nossos pecados. Chegar ao arrependimento profundo e verdadeiro de quem decide: não quero mais sofrer e fazer sofrer com esses meus pecados. Vamos fazer uma boa confissão nesta Quaresma. Precisamos retificar nossa tendência ao egoísmo, as reações de soberba e de amor próprio. Para preparar a Confissão, façamos um exame de consciência, seguindo dois roteiros: os Mandamentos da Lei de Deus e os sete pecados capitais (soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça). Certamente, encontraremos muitos motivos de arrependimento e contrição. Assim, nunca esqueceremos que Jesus derramou todo o seu precioso sangue por nós.

Dom Carlos Lema Garcia

Vigário Episcopal para a Educação e a Universidade

Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO Edição 3143