‘A opinião pública tem o direito de conhecer a verdade, sem a manipulação ideológica’

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O Arcebispo Metropolitano, em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO, reiterou o apoio a farinata da Plataforma Sinergia e lamentou a negativa da população
Publicado em: 25/10/2017 - 10:30
Créditos: Redação
Luciney Martins/O SÃO PAULO

Os dias seguintes à coletiva de imprensa de 18 de outubro na Cúria Metropolitana (leia detalhes na página 14) foram de intensas críticas ao apoio da Arquidiocese de São Paulo à Plataforma Sinergia, que detém a tecnologia para a produção da Farinata, produto alimentício que será adotado pela Prefeitura de São Paulo como parte do projeto “Alimento para Todos”, estruturado a partir da lei 16.704/2017, que cria a Política Municipal de Erradicação da Fome e da Promoção Social dos Alimentos.


Em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO , o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano, reitera o apoio à proposta da Plataforma Sinergia como uma alternativa para a solução do problema da fome, do descarte de alimentos e do consequente dano ambiental pelo excessivo desperdício. Ele também lamenta que a opinião pública não tenha tido acesso às informações corretas da proposta e que as reflexões na sociedade ainda não estejam sobre o ponto central do programa. “Na discussão em questão, o que deveria estar em primeiro lugar é a pessoa do pobre, a luta contra o vergonhoso desperdício de alimentos, que gera muitos danos ambientais, e o bem da ‘casa comum’. Isso deveria estar acima de interesses partidários e constituir a plataforma comum para o engajamento de todos”, afirmou. 

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

 

O SÃO PAULO - MESMO APÓS A COLETIVA DE IMPRENSA REALIZADA NO DIA 18 PELA ARQUIDIOCESE, A PLATAFORMA SINERGIA E A PREFEITURA DE SÃO PAULO, PERMANECEM QUESTIONAMENTOS SOBRE A QUALIDADE E A VIABILIDADE DO USO DA FARINATA PARA AUXILIAR NO COMBATE À FOME NA CIDADE. A QUE O SENHOR ATRIBUI A INSISTÊNCIA DE ALGUNS SETORES DA SOCIEDADE EM DESQUALIFICAR ESSA INICIATIVA DA PLATAFORMA SINERGIA?

Cardeal Odilo Pedro Scherer - A opinião pública tem o direito de ter informações corretas sobre as questões que estão em jogo nessa polêmica: 1)  Sobre o programa da Prefeitura – “Alimento para Todos”, é a Prefeitura que deve dar as explicações adequadas; 2) A lei municipal, assinada pelo Prefeito João Doria, é resultante de um projeto de lei na Câmara Municipal, de autoria do vereador Gilberto Natalini, que foi aprovado com grande consenso. Essa lei trata do direito ao alimento e das medidas para viabilizar o que ela prevê. A própria lei é de domínio público e está na base do programa “Alimento para Todos”; 3) A Farinata, produto alimentício semelhante à farinha, é obtida da transformação de vários alimentos ainda bons, transformados através de um processo próprio para lhes proporcionar ainda uma ulterior durabilidade. Da Farinata podem ser produzidos vários produtos prontos para o consumo, como pão, macarrão, bolo, pizza etc. Não se trata de “rejeitos” de alimentos, nem de alimentação de qualidade questionável. Quem deve dar as informações sobre a Farinata é a detentora de sua patente, a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) chamada Plataforma Sinergia. A insistência em desqualificar a Farinata, ao meu ver, tem diversos motivos, entre os quais a forma inadequada como foi apresentada ao público, a desinformação, o envolvimento ideológico e partidário e o interesse eleitoral de diversos setores. Infelizmente, a Farinata foi identificada com um derivado dela, logo “carimbado” como “ração” e tido como “indigno” dos pobres e da pessoa humana. Grande equívoco, se não foi maldade! O repasse irrefletido desse equívoco pelas mídias não deu mais espaço para uma compreensão serena e objetiva da própria Farinata e das possibilidades alimentares que ela pode oferecer. Volto ao início da resposta: a opinião pública tem o direito de conhecer a verdade das coisas, sem a manipulação ideológica de quem quer que seja.

 

O SENHOR JÁ DISSE EM OUTRAS ENTREVISTAS QUE A INICIATIVA DA PLATAFORMA SINERGIA NÃO É UM PROJETO DO GOVERNO JOÃO DORIA. PODE NOS RECORDAR QUANDO TOMOU CIÊNCIA DA PROPOSTA DA PLATAFORMA E COMO A TEM APOIADO DESDE ENTÃO?

De fato, desde 2012, acompanho com interesse a elaboração da proposta da Plataforma Sinergia, porque creio que ela vai na linha da solução de três questões que apelam à consciência e preocupam muito a Igreja: 1) O escândalo da fome no mundo e no Brasil também; 2) O também escândalo do enorme desperdício de alimentos bons para o consumo. O Brasil é um campeão no desperdício de alimentos; 3) O pesado dano ambiental causado pelo desperdício e mau aproveitamento dos alimentos.

 

ALGUMAS PESSOAS, INCLUINDO ALGUNS LÍDERES RELIGIOSOS, AFIRMAM QUE A ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO NÃO DEVERIA APOIAR UMA INICIATIVA QUE DARÁ “MIGALHAS AOS POBRES”. O QUE O SENHOR TEM DIZER A RESPEITO?

Penso que devemos ter diante de nós a meta ideal a ser buscada e lutar por ela. Neste caso, a meta é que os pobres tenham condições de vida digna, respeito à sua humana dignidade e seus direitos, alimento com qualidade, moradia, roupa, casa, escola, trabalho, segurança, além de outros bens necessários à vida digna. Para alcançar essas metas, todos devem se empenhar e, mais ainda, os governantes. No entanto, não devemos deixar de fazer aquilo que hoje nos é possível, mesmo que ainda não satisfaça integralmente as necessidades e os direitos dos pobres. Além do mais, os pobres precisam ser ajudados aqui e agora. O Papa Francisco nos lembra: pobre tem nome, rosto, idade, momento e lugar onde vive. Pobre não é simplesmente uma categoria ideal ou ideológica. Pobre é pessoa concreta. Se não temos ainda a solução ideal, não devemos deixar de fazer o que está ao nosso alcance.

 

QUE RESPOSTA O SENHOR DARIA A OUTRAS CRÍTICAS QUE PODEM SER RESUMIDAS NO SEGUINTE PENSAMENTO: “AO APOIAR UMA INICIATIVA COMO ESSA, A IGREJA ESTÁ ENXERGANDO O POBRE COMO UM ‘COITADINHO’ E DEIXANDO DE COLABORAR PARA QUE ELE, EFETIVAMENTE, MUDE SUA CONDIÇÃO DE VIDA”?

A resposta já está na questão anterior, mas acrescento que o pobre, para a Igreja, não é um “coitadinho”. Esse é um clichê aplicado à Igreja de maneira preconceituosa, mas é equivocado. Para a Igreja, o pobre é uma pessoa concreta, com dignidade e direitos a serem respeitados e valorizados em cada pessoa pobre. Talvez se pretenda que a Igreja deva se alinhar a um partido específico ou não deva trabalhar com determinado governante, porque pertence a certo partido... Mas, a Igreja não é um partido e tem suas motivações próprias para agir e não deve ser instrumentalizada para fins político- partidários. Na discussão em questão, o que deveria estar em primeiro lugar é a pessoa do pobre, a luta contra o vergonhoso desperdício de alimentos, que gera muitos danos ambientais, e o bem da “casa comum”. Isso deveria estar acima de interesses partidários e constituir a plataforma comum para o engajamento de todos.