Questão de hermenêutica

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28/07/2015 - 13:45

O Papa conversa com os jornalistas no voo de regresso da América Latina
Deve-se considerar o contexto no seu conjunto, a situação e até a história

Durante o voo de Assunção para Roma no final da viagem apostólica ao Equador, Bolívia e Paraguai, o Papa Francisco encontrou-se com os jornalistas para a habitual conversa. Publicamos a tradução do diálogo introduzido pelo diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, padre Federico Lombardi.

Aníbal Velazquez: Santidade, agradecemos ao senhor por ter elevado o Santuário de Caacupé à categoria de Basílica. Entretanto, no Paraguai as pessoas perguntam-se: por que o Paraguai não tem um cardeal?

Bem, não ter um cardeal não é um pecado. A maioria dos países do mundo não têm cardeais. As nacionalidades dos cardeais — não me lembro quantas são — são uma minoria em relação ao todo. É verdade, o Paraguai não teve nenhum cardeal até agora. Eu não saberia dar uma razão. Às vezes, para a escolha de cardeais, faz-se o balanço, lêem-se, estudam-se as fichas de cada um, tem-se em conta a pessoa, o carisma do cardinalato, que é aconselhar o Papa e ajudá-lo no governo universal da Igreja. O cardeal, ainda que pertença a uma Igreja particular, está — e daí a razão do nome cardeal — incardinado na Igreja de Roma, e deve ter uma visão universal. Isso não quer dizer que no Paraguai não existam bispos que tenham tal visão, podem tê-la, mas como somente se pode escolher até um número — não se pode designar mais de 120 cardeais eleitores — portanto, essa é a razão. A Bolívia teve dois cardeais. O Uruguai teve dois, Barbieri e o atual. Alguns países da América Central também nunca tiveram cardeais, mas isso não é nenhum pecado e tudo depende das circunstâncias, das pessoas, do carisma de ser incardinado. E isso não significa um desprezo ou que os bispos paraguaios não têm valor. Há grandes bispos paraguaios. Lembro-me dos dois Bogarín, que fizeram história no Paraguai. Por que não foram cardeais? Bem, simplesmente não foram. Não se trata de uma promoção, não é? Eu faço a mim mesmo outra pergunta: será que o Paraguai merece ter um cardeal, se olhamos para a Igreja do Paraguai? Eu diria: mereceria ter dois. Mas a razão é outra, não tem nada a ver com os méritos. É uma Igreja viva, uma Igreja alegre, uma Igreja lutadora e com uma história gloriosa.

Priscila Quiroga e Cecilia Dorado Nava: Santidade, por favor, interessa-nos conhecer o seu critério, se considera justo a aspiração dos bolivianos a terem um acesso soberano ao mar, de voltar a ter um acesso soberano ao Oceano Pacífico. E, Santo Padre, se o Chile e a Bolívia pedissem a sua mediação, o senhor aceitaria?

A mediação é uma coisa muito delicada, e seria como um último passo. A Argentina viveu isso com o Chile e foi realmente para evitar uma guerra. Foi uma situação limite e muito bem conduzida por aqueles a quem Santa Sé encarregara — por detrás deles estava sempre a figura de São João Paulo II que mantinha interesse na questão. E houve boa vontade dos dois países que disseram «provemos se isto funciona». E, é curioso, havia um grupo, pelo menos na Argentina, que nunca quis esta mediação, e quando o presidente Alfonsín fez o plebiscito sobre a proposta de mediação, obviamente, a maior parte do país disse que sim, mas houve um grupo que resistiu. Sempre, quando se faz uma mediação, é muito difícil que o país inteiro esteja de acordo; mas esta é a última instância; sempre há outras figuras diplomáticas que ajudam, neste caso, facilitadores, etc. Neste momento, tenho de ser muito respeitoso com isso, pois a Bolívia apresentou um recurso a um Tribunal internacional. Assim que, se eu, neste momento, faço um comentário — eu sou um chefe de Estado — isso poderia ser interpretado como uma ingerência ou uma pressão. Tenho de ser muito respeitoso com a decisão que o povo boliviano tomou ao apresentar este recurso. Sei também que houve instâncias precedentes no sentido de querer dialogar. Mas não o tenho muito claro. Quando me disseram algo neste sentido, que se estaria perto de uma solução, foi no tempo do presidente chileno Lagos, mas falo sem ter os dados exatos. Trata-se de um comentário que me fez o cardeal Errázuriz. Assim que não queria dizer um «desatino» sobre este tema. Também há uma terceira coisa que eu quero deixar claro. Eu, na catedral da Bolívia, toquei neste tema de um modo muito delicado, tendo em conta a situação do recurso ao Tribunal internacional. Lembro-me perfeitamente do contexto. Dizia: «Os irmãos têm que dialogar, que os povos latino-americanos dialoguem para criar a grande pátria, o diálogo é necessário». Então, detive-me, fiz um silêncio, e acrescentei: «Penso no mar». E continuei: «diálogo e diálogo». Quero que fique claro que a minha intervenção foi uma lembrança desse problema, mas respeitando a situação como ela é tratada atualmente. Ao estar num Tribunal internacional, não se pode falar de mediação ou facilitação, é preciso esperar.

A aspiração dos bolivianos é justa ou não?

Há sempre uma base de justiça, quando se trata de mudança nas fronteiras territoriais e, especialmente, depois de uma guerra. Há uma revisão contínua neste aspeto. Eu diria que não é injusto considerar algo deste tipo, uma aspiração do gênero. Lembro-me que, em 1961, quando eu estava no meu primeiro ano de filosofia, fizeram-nos ver um documentário sobre a Bolívia — foi um padre que tinha vindo da Bolívia — acho que se chamava «As doze estrelas». Quantas províncias tem a Bolívia? [Respondem que são 9 departamentos]. Então chamavam-se «As 10 estrelas». Este documentário apresentava cada um dos 9 departamentos e, no final, o décimo departamento; e via-se o mar sem nenhuma palavra. Isso ficou-me gravado. Isso foi no ano 61. Ou seja, percebe-se que há uma aspiração. Claro, depois de uma guerra desse tipo, surgem as perdas, e acho que é importante, em primeiro lugar, o diálogo, a negociação saudável. Agora, neste momento, o diálogo está obviamente parado por este recurso no Tribunal de Haia.

Fredy Parede: O Equador estava em convulsão antes da sua visita. Depois que o senhor deixou o país, as pessoas que fazem oposição ao governo voltaram para as ruas. Parece que a sua presença quer ser utilizada politicamente, sobretudo devido a uma frase que o senhor pronunciou: «O povo do Equador ficou de pé com dignidade».

Evidentemente eu sabia que havia problemas políticos e greves. Sei disso. Não conheço os meandros da política do Equador e seria uma necedade da minha parte dar uma opinião. Disseram-me depois que houve como que um parêntese durante a minha visita, algo pelo qual sou grato, porque é o gesto de um povo que está em pé: o respeito pela visita do Papa. Agradeço e aprecio isso. Mas, se a situação volta, significa certamente que os problemas e as discussões políticas continuam. Em relação à frase que você comentou — refiro-me à maior consciência que o povo equatoriano tem tomado do seu valor: houve uma guerra com o Peru por causa da fronteira, não há muito tempo. Há histórias de guerra. Pensava também na maior consciência da variedade da riqueza étnica do Equador. E isso dá dignidade. O Equador não é um país de descarte. Ou seja, a expressão refere-se ao povo inteiro e à dignidade desse povo que, após a guerra por causa das fronteiras, se colocou de pé e tem tomado cada vez mais consciência da sua dignidade e da riqueza da unidade na variedade que possui. Quero dizer, a expressão não pode ser atribuída a uma situação particular. Porque essa mesma frase — comentaram- me — não a vi, foi instrumentalizada para explicar as duas situações: o governo que colocou de pé o Equador; ou que se colocaram de pé os opositores do governo. Uma frase pode ser instrumentalizada e neste aspeto creio que é preciso ser muito cuidadoso. E agradeço-lhe a pergunta, porque é uma maneira de ser cuidadoso. Você dá um exemplo de ser cuidadoso. Se me permitirdes, dado que não se trata de uma pergunta que me fizeram, posso conceder minutos a mais, se for necessário. A hermenêutica de um texto é muito importante no seu trabalho. Um texto não pode ser interpretado com uma frase. A hermenêutica tem de ser segundo todo o contexto. Há frases que são justamente a chave hermenêutica e frases que não o são, que são pronunciadas de passagem ou são artificiais. Então, ver todo o contexto, ver a situação, ver também a história. Ver a história desse momento ou se falamos do passado; interpretar um fato do passado com a hermenêutica desse tempo. Por exemplo, as cruzadas: interpretamos as cruzadas segundo a hermenêutica do modo como se pensava naquele tempo. É essencial interpretar um discurso, qualquer texto, com uma hermenêutica totalizante, não isolada. Digo-o como ajuda para vós. Muito obrigado. Agora vamos passar para «Guarani».

Stefania Falasca: O que o senhor acha daquilo que acontece na Grécia e que também diz respeito a toda a Europa?

Em primeiro lugar, [quero falar do] motivo do meu discurso no congresso dos Movimentos populares. Era o segundo [Congresso]. O primeiro foi realizado no Vaticano, na Sala antiga do Sínodo. Estavam presentes aproximadamente 120 pessoas. Trata-se de uma iniciativa que organiza [o Pontifício Conselho] Justiça e Paz. Eu estou próximo desta realidade, porque é um fenômeno presente em todo o mundo. Mesmo no Oriente, nas Filipinas, na Índia, na Tailândia. São movimentos que se organizam entre si, não só para protestar, mas para seguir em frente e poder viver. São os movimentos que fazem pressão; e essas pessoas, são tantas, não se sentem representadas pelos sindicatos, porque dizem que os sindicatos agora são uma corporação, não lutam — simplifico um pouco — pelos direitos dos mais pobres. E a Igreja não pode ficar indiferente. A Igreja tem uma Doutrina social e dialoga com este movimento; e mantém um bom diálogo. Vistes o seu entusiasmo; escutastes aquilo que eles dizem, ou seja: «que a Igreja não está longe de nós; a Igreja tem uma doutrina que nos ajuda a lutar por isso». É um diálogo. Não é que a Igreja faça uma escolha pela via da anarquia. Não, eles não são anarquistas: eles trabalham, tentam fazer muitos trabalhos, mesmo com os resíduos, com as coisas que se descartam; são verdadeiros trabalhadores. Este era o primeiro ponto: a importância deste [movimento]. Em seguida, a questão da Grécia e do sistema internacional. Tenho grande alergia à economia, porque o meu pai era contador e, quando não terminava o trabalho na fábrica, levava o trabalho para casa; sábado e domingo, com aqueles livros que, naquele tempo, tinham os títulos escritos em carateres góticos… ele trabalhava e eu via-o, por isso tenho uma «alergia». Não entendo muito bem a situação [a questão da Grécia], mas certamente seria simplório dizer que a culpa foi somente de uma das partes. Os governantes gregos, que levaram adiante esta situação da dívida internacional, têm também uma responsabilidade. Com o novo governo grego, procurou-se uma revisão um pouco justa. Faço votos — e esta é a única coisa que posso dizer, porque não conheço bem a questão — que possam encontrar uma estrada para resolver o problema grego, bem como um modo de monitorar que outros países não caiam no mesmo problema; e que isso nos ajude a seguir em frente, pois esta estrada do empréstimo e da dívida, no fim de contas, nunca termina. Disseram-me, há um ano mais ou menos, não sei ao certo — trata-se de algo que ouvi falar — que haveria um projeto nas Nações Unidas — se algum de vós sabe desse tema, seria bom se pudesse explicar; haveria um projeto segundo o qual um país pode declarar a falência  — que não é a mesma coisa que o default — mas tratar-se-ia de um projeto do qual ouvi falar e não sei como terminou; se era verdade ou não. Se uma empresa pode fazer uma declaração de falência, por que um país não pode fazê-lo, e assim ir buscar ajuda? Estes seriam os fundamentos deste projeto, mas sobre este tema, não posso dizer mais nada. Depois, no que se refere à nova colonização, obviamente, tratamos do âmbito dos valores. A colonização do consumismo, por exemplo. O hábito do consumismo foi um processo de colonização; porque conduz o sujeito a um hábito que não é seu, ao mesmo tempo que desequilibra a sua personalidade. O consumismo também desequilibra a economia interna e a justiça social, bem como a saúde física e mental, só para dar um exemplo.

Anna Matranga: Santidade, uma das mensagens mais fortes desta viagem foi que o sistema econômico global impõe muitas vezes a mentalidade do lucro a todo o custo, em detrimento dos pobres. Isto é visto pelos americanos como uma crítica direta ao seu sistema e ao seu estilo de vida. Como o senhor responde a essa percepção?

Aquilo que eu disse — aquela frase — não é novidade. Eu já dissera na Evangelii gaudium, «esta economia mata» (n. 53). Essa frase, da qual me lembro bem, tem um contexto. E eu repeti-a na Laudato si’. A crítica não é algo novo, sabe-se disso. Ouvi dizer que algumas críticas foram feitas nos Estados Unidos. Mas não as li e não tive tempo para as estudar bem, porque toda a crítica deve ser recebida e estudada para depois fazer o diálogo. Você me perguntará o que eu acho, mas se eu não tiver dialogado com aqueles que fazem a crítica, não tenho o direito de fazer tal juízo, isolado do diálogo. Isto é o que eu tenho para lhe dizer.

Agora o senhor vai aos Estados Unidos, tem alguma ideia de como será recebido, tem algum pensamento sobre a Nação?

Não. Devo começar a estudar agora, porque até hoje estudei sobre estes três países belíssimos, que são uma riqueza e uma beleza. Agora eu tenho que começar a estudar sobre Cuba, porque farei uma visita de dois dias e meio, e então os Estados Unidos, a três cidades do Leste — porque ao Oeste não poderei ir — vou a Washington, Nova Iorque e Filadélfia. Sim, tenho de começar a estudar estas críticas e, em seguida, dialogar um pouco.

Aura Vistas Miguel: Santidade, o que sentiu quando viu a escultura da foice e do martelo com Cristo em cima, oferecido pelo presidente Morales? O que aconteceu com o objeto?

É curioso. Eu não conhecia este objeto, nem sequer sabia que o padre Espinal era escultor e poeta. Soube durante estes dias. Vi o objeto e para mim foi uma surpresa. Em segundo lugar, tal objeto pode ser qualificado como arte de protesto. Por exemplo, em Buenos Aires, há alguns anos, foi realizada uma exposição de um bom escultor, criativo, da Argentina — já falecido — era arte de protesto. Lembro-me de uma obra que era um Cristo crucificado junto de um bombardeiro que se aproximava. Era uma crítica ao cristianismo que se teria aliado ao imperialismo representado pelo bombardeiro. Assim sendo, em primeiro lugar, eu não sabia do presente. Em segundo lugar, eu qualifico-o como arte de protesto que, nalguns casos, pode ser ofensiva. Em terceiro lugar, neste caso concreto, o padre Espinal foi morto em 1980. Era uma época em que a teologia da libertação tinha muitas vertentes diversas, entre as quais estava a vertente que usava a análise marxista da realidade. O padre Espinal pertencia a esta vertente. Isto eu sabia, pois naquela época eu era reitor da Faculdade de Teologia e falava-se muito sobre isso, sobre as diversas vertentes e de quais eram os seus representantes. No mesmo ano, o padre-geral da Companhia de Jesus, Arrupe, escreveu uma carta a toda a Companhia sobre a análise marxista da realidade, detendo um pouco este processo ao dizer que: «não, são coisas diferentes, não pode ser, não está certo ». E quatro anos depois, em 1984, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou o primeiro pequeno volume, a primeira declaração sobre a teologia da libertação, criticando-a. Em seguida, veio o segundo volume, que abria perspetivas mais cristãs. Simplifico as coisas. Façamos a hermenêutica daquela época. Espinal era um entusiasta desta análise marxista da realidade, mas também da teologia, usando o marxismo. Esta foi a inspiração da obra. Os poemas de Espinal também são deste gênero de protesto: era a sua vida, era o seu pensamento; ele foi um homem especial, com tanta genialidade humana, e que lutava de boa fé. Fazendo tal hermenêutica, eu entendo esta obra. Para mim, não foi uma ofensa. Mas tive que fazer esta hermenêutica e comento-o convosco para que não haja opiniões. Agora trago comigo este objeto. Vem comigo. Você talvez tenha ouvido falar que o presidente Morales queria dar-me duas condecorações: uma é a mais importante da Bolívia e a outra é a Ordem do padre Espinal, uma nova Ordem. Eu nunca aceitei uma condecoração, não me sinto bem com isso... Mas ele fez isso com tanta boa vontade e com o desejo de me agradar. E eu pensei que se tratava de algo vindo do povo da Bolívia — rezei nesta intenção e pensei: se as levo para o Vaticano, irão para um museu e ninguém as verá. Então pensei em deixá-las à Virgem de Copacabana, a Mãe da Bolívia. Assim, estas duas condecorações vão para o Santuário de Copacabana, entreguei-as a Nossa Senhora. Quanto ao Cristo, levo-o comigo. Obrigado.

Anaïs Feuga: Durante a Missa em Guayaquil, o senhor disse que o Sínodo deveria fazer amadurecer um verdadeiro discernimento para encontrar soluções concretas para as dificuldades das famílias. E depois pediu que as pessoas rezassem para que mesmo aquilo que nos parece imundo, nos escandaliza ou nos assusta, Deus possa transformá-lo em milagre. Pode apontar-nos a que situações «impuras» ou «assustadoras» ou «escandalosas» o senhor se referia?

Farei, aqui de novo, a hermenêutica do texto. Eu falei sobre o milagre do vinho bom [nas bodas de Caná] e falei que as ânforas de água estavam cheias, mas que estes eram para a purificação. Ou seja, cada pessoa que entrava naquela festa fazia a sua purificação e deixava naquelas ânforas a sua imundície espiritual. Era um rito de purificação que se fazia antes de entrar numa casa, ou mesmo no templo. Um rito que agora temos na água benta: permaneceu este elemento daquele rito judaico. Disse que Jesus faz o melhor vinho justamente com a água daquela mundície, daquilo que era o pior. De modo genérico, eu pensei em fazer o seguinte comentário: a família está em crise, todos nós sabemos, basta ler o Instrumentum laboris [do próximo Sínodo dos bispos sobre a família], que vós conheceis bem, pois já foi apresentado, está tudo ali. Eu referia-me de modo genérico a tudo isso: que a Senhor nos purificasse dessas crises, de tantas coisas que estão descritas no Instrumentum laboris. Trata-se de algo genérico, não pensei em nenhum ponto particular. Que [o Senhor] nos faça melhores, que nos torne famílias mais maduras, melhores. A família está e seguiremos em frente. Mas os pormenores desta crise estão todos descritos no Instrumentum laboris do Sínodo, já está publicado e ao qual tendes acesso.

Javier Martínez Brocal: Faço a pergunta, em nome também de todos os jornalistas de língua espanhola. Vimos como teve êxito a mediação entre Cuba e os Estados Unidos. Pensa que se poderia fazer algo de semelhante noutras situações delicadas do Continente latino-americano? Penso na Venezuela e também na Colômbia. Depois, tenho uma curiosidade: penso no meu pai, alguns anos mais jovem do que o senhor, mas com metade da sua energia. Vimo-lo nesta viagem, vimo-lo nestes dois anos e meio. Qual é o seu segredo?

Qual é a sua «droga», esta é a pergunta que ele gostaria de fazer… [ri]! O processo entre Cuba e os Estados Unidos não foi mediação. Não teve o caráter de mediação. Havia um desejo que tinha chegado. Do outro lado também, um desejo... E, em seguida — digo a verdade, isso teve lugar em Janeiro do ano passado — passaram-se três meses em que eu só rezava por isso, não me decidi… o que poderia fazer com estes dois países, depois de mais de 50 anos que estavam assim? Então o Senhor fez-me pensar num cardeal. Ele foi para lá, manteve conversas e, depois disso, eu não soube de nada. Passaram meses, e um dia, o Secretário de Estado — que está aqui — disse-me: «Amanhã teremos a segunda reunião com as duas equipes». «Como é?» «Sim, há diálogo, mantêm-se conversas entre os dois grupos». Resolveu-se por si mesmo, não foi uma mediação, foi a boa vontade dos dois países; o mérito é deles, foram eles que fizeram isso. Nós não fizemos quase nada, apenas pequenas coisas, e em meados de Dezembro, saiu o anúncio. Esta é a história, realmente, não há nada mais. Neste momento, preocupa-me o processo de paz na Colômbia; que ele não se detenha. Devo dizê-lo e faço votos de que este processo continue a progredir e, nesse sentido, estamos sempre dispostos a ajudar, com tantas formas de ajuda. Mas seria ruim se este processo não tivesse continuidade. Na Venezuela, a Conferência episcopal trabalha para alcançar um pouco de paz, mas ali também não há nenhuma mediação. No caso dos Estados Unidos [e Cuba] foi o Senhor e duas circunstâncias casuais. Depois, o processo caminhou sozinho. Rezo e faço votos pela Colômbia — devemos rezar — para que o processo de paz não se detenha. É um processo que já dura há mais de 50 anos; e aqui também, quantos mortos! Ouvi dizer que são milhões. Sobre a Venezuela, não tenho nada mais a dizer. Sobre a «droga». Bem, o mate ajuda-me, mas eu não provei a coca. Isso é claro!

Ludwig Ring-Eifel: Por que no Magistério do Santo Padre há tão poucas mensagens para a classe média? E se houvesse tal mensagem, qual seria?

Muito obrigado, é uma boa correção, obrigado! Você está certo, é um erro da minha parte. Tenho de pensar sobre isso. Vou fazer algumas observações, mas não para me justificar. Você tem razão, tenho que pensar um pouco. O mundo está  polarizado. A classe média diminui. A polarização entre ricos e pobres é grande, isso é verdadeiro, e talvez isso me tenha levado a não ter considerado a classe média. Falo no mundo em geral; há alguns países que estão bem sob este aspeto; mas no mundo em geral, pode-se observar esta polarização e que o número dos pobres é grande. E por que eu falo dos pobres? Porque este é o coração do Evangelho, e sempre falo da pobreza à luz do Evangelho, embora também seja uma realidade sociológica. Por outro lado, disse algumas palavras sobre a classe média, embora estas tenham sido um pouco en passant. Mas as pessoas comuns, os trabalhadores... Trata-se de algo de grande valor. Mas eu acho que você disse algo que tenho de fazer; devo aprofundar o meu Magistério sobre este tema. Obrigado. Obrigado pela ajuda. Obrigado.

Vania De Luca: Durante estes dias, o senhor insistiu na necessidade dos caminhos de integração, inclusão social, contra a mentalidade do descarte. Também apoiou projetos que vão na direção do viver bem. Embora já nos tenha dito que ainda tem que pensar na viagem aos Estados Unidos, o senhor pensa que falará sobre estas questões na ONU, na Casa Branca? Tinha em mente esta próxima viagem quando falava destas problemáticas?

Não. Pensava nesta viagem e no mundo em geral. Neste momento, a dívida dos países do mundo é terrível. Todos os países têm dívidas e há um ou dois países que compraram as dívidas dos grandes países. É um problema global. Mas, com isso, eu não pensei particularmente na viagem aos Estados Unidos.

Courtney Walsh: Agora que Cuba terá um papel mais importante na comunidade internacional, o senhor acredita que Havana terá que melhorar a sua reputação a respeito dos direitos humanos, incluindo a liberdade religiosa? E o senhor acredita que Cuba pode perder algo nesta nova relação com o país mais poderoso do mundo?

Os direitos humanos são para todos e não é que não se respeitem os direitos humanos apenas num ou dois países. Posso dizer que em muitos países do mundo não se respeitam os direitos humanos, em muitos países do mundo! O que perde Cuba e o que perdem os Estados Unidos? Ambos ganham alguma coisa e perdem algo, porque é isso o que acontece numa negociação. Mas aquilo que os dois ganham é a paz. Isso é certo. O encontro, a amizade, a cooperação: este é o ganho. Não  sou capaz de pensar naquilo que perderão, serão coisas concretas; mas numa negociação, sempre se ganha e se perde. Voltando aos  direitos humanos e à liberdade religiosa, pensai:  no mundo, há países, incluindo algum país europeu, que não permitem que se faça um sinal religioso, por diversos motivos. E noutros  continentes acontece a mesma coisa. Esta é a verdade: a liberdade religiosa  não é respeitada em todo o mundo; há muitos países onde ela não é respeitada.

Benedite Lutaud: Santidade, o senhor é visto como novo líder mundial de políticas alternativas; gostaria de saber por que dá tanta atenção aos movimentos  populares e menos ao mundo empresarial; e se o senhor acha que a Igreja o seguirá na sua iniciativa de estender a mão aos movimentos populares que são em grande parte seculares.

Obrigado! O mundo dos movimentos populares é uma realidade; É uma realidade muito grande, em todo o mundo. Que é o que eu fiz? Dei-lhes a doutrina social da Igreja, como faço com o mundo empresarial. A Igreja tem uma doutrina social. Se ler o que eu disse aos movimentos populares — é um discurso  bem grande — verá que se trata de um resumo da  doutrina social da Igreja, mas aplicado à situação de tais movimentos. Mas é a doutrina  social da Igreja. Tudo quanto eu disse, é Doutrina social da Igreja, e  quando devo falar com o mundo empresarial, falo da mesma coisa, ou seja, o que a doutrina social da Igreja  diz ao mundo empresarial. Por exemplo, na Encíclica Laudato si’ há uma parte que trata do bem comum e da dívida social da propriedade privada que vai nessa direção; mas trata-se sempre de aplicar a doutrina social da Igreja.

O senhor acha que a Igreja o seguirá com esta «mão estendida»?

Sou eu quem segue a Igreja aqui, pois simplesmente prego a Doutrina social da Igreja para este movimento. Não é uma mão estendida a um inimigo, não é um fato político. Não. É um fato catequético. Queria que isto ficasse claro. Obrigado.

Cristina Cabrejas: Santo Padre, o senhor não tem um pouco de medo que os seus discursos sejam instrumentalizados pelos governos, pelos grupos de poder, pelos movimentos?

Repito um pouco aquilo que disse anteriormente. Cada palavra, cada frase de um discurso pode ser instrumentalizada. Era o que me perguntava o jornalista equatoriano. Justamente, frente a uma mesma frase do discurso, alguns diziam que era pró-governo e outros que era contra o governo. E por isso, tomei a liberdade de falar da hermenêutica total. Sempre há instrumentalização. Às vezes, aparecem notícias que escolhem uma frase e esta fora do contexto. Sim, eu não tenho medo; simplesmente digo: atenção com o contexto! Se eu estiver errado, com um pouco de vergonha, peço desculpa e sigo em frente.

Permita-me uma anedota: o que acha dos selfies durante a Missa, que fazem os jovens, crianças, colegas?

O que eu acho? É uma outra cultura. Eu sinto-me um bisavô. Hoje, ao despedir-me, um polícia, adulto, teria uns 40 anos, disse-me: «faço um selfie». Disse-lhe, mas és um adolescente! É outra cultura, mas eu respeito isso.

Andrea Tornielli: Santo Padre, como resumo, que mensagem queria dar à Igreja na América Latina durante estes dias? E que papel a Igreja latino-americana pode desempenhar, também como um sinal no mundo?

A Igreja latino-americana tem uma grande riqueza é uma Igreja jovem, e isso é importante. Uma Igreja jovem com um certo vigor e  algumas informalidades: ela não é muito formal. Tem também uma rica  teologia, a nível de pesquisa. Quis encorajar esta Igreja jovem e acredito que esta Igreja pode dar-nos  muito. Comento algo que me impressionou muito. Nos três países, em todos eles, havia nas ruas pais e mães com crianças; faziam-me ver as crianças. Nunca tinha visto tantas crianças. É um povo — também a Igreja é assim — que é uma lição para nós, para a Europa, onde a diminuição dos nascimentos nos deixa um pouco espantados; também as políticas para ajudar as famílias numerosas são poucas. Penso na França que tem uma boa política para ajudar as famílias numerosas, onde [a taxa de natalidade] chega — creio — a mais de dois por cento, enquanto outros países estão  perto de zero, embora nem todos. Acho que na Albânia 45% da população está com 40 anos ou menos,  mas no Paraguai corresponde a mais de 70%. A riqueza deste povo  e desta Igreja é que ela é uma Igreja viva. É uma riqueza, uma Igreja  de vida. Isso é importante. Acho que devemos aprender com isso e corrigir-nos, caso contrário, se não   houver filhos... Isso é o que me incomoda tanto no «descarte»: descartam- se as crianças, descartam-se os idosos e, com a falta de trabalho, descartam-se os jovens. Por isso, os povos novos, os povos jovens  dão-nos mais força. Para a Igreja, que chamaria Igreja jovem — com muitos problemas, porque ela tem problemas — creio que é esta a mensagem que tenho para dar: não tenha medo desta juventude e deste vigor da Igreja. Talvez seja também uma Igreja um pouco indisciplinada, mas com o tempo disciplinar-se-á, e dar-nos-á muitas coisas boas.

Fonte: Edição nº 30 do Jornal L’OSSERVATORE ROMANO – páginas 10 a 13