A misericórdia

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2015 a 2016, o papa Francisco institui o Ano da Misericórdia e o coloca no coração de nosso tempo
Publicado em: 09/12/2015 - 15:15
Créditos: Edição nº 960 da Revista Família Cristã – páginas 54 e 55

Cada tempo apresenta características, ofertas e necessidades especiais. A aceleração e a profundidade das mudanças dos últimos anos deixam-nos assombrados e, ao mesmo tempo inquietos, em relação ao que foi, ao que é e ao que será da vida e seus mistérios. O encantamento pelo progresso científico e técnico, com seus sempre mais sofisticados meios, já seduziu e atraiçoou a tantos no que se refere aos fins, levando muita gente a se desencantar. A anunciada "morte de Deus" dos anos 1960, no século passado, viu-se silenciada por um "rumor de anjos" anunciando a proliferação de novas formas e manifestações de religiosidade.

Os totalitarismos brutais do século 20 são lembrados com repugnância e registrados nas páginas da História, para confirmar até que ponto pode chegar a impiedade humana. As ideologias, com seus radicalismos, vão perdendo forças e sentindo-se relativizadas por não resolverem o enigma da vida e nem da convivência humana. O esperado século 2l, sendo passagem para um novo milênio, foi preparado com fortes esperanças e sonhos. Mesmo assim, a impiedade humana continua confirmando a perda do senso trágico nos fatos brutais, registrando terrorismos, perseguições a cristãos, vitimando crianças e expondo multidões de refugiados a toda a sorte de torturas. A tudo isso se somam também as catástrofes naturais que ameaçam a casa comum.

A tentadora idolatria ao dinheiro e os mecanismos do acúmulo continuam comprometendo os valores éticos e edificando a esmagadora pirâmide social dos empobrecidos. Ontem, como hoje, vem avançando a cultura da morte e da indiferença. Dentro de um cenário mundial, onde a humanidade se debate com tantos tipos de sofrimentos, aparecem os que fazem disso o argumento mais crítico para afirmar o ateísmo moderno. Mas também despontam os profetas de Deus. Estes acreditam que a luz é mais forte que as trevas, a vida sempre prevalece sobre a morte e sempre é possível a transformação.

Recurso para o resgate - Para os profetas da cultura da vida, a medicina da misericórdia é indicada como o grande recurso para o resgate da dignidade humana e como possibilidade de ampliar relações redimidas. No dia 11 de outubro de 1962, o então Papa São João XXIII, ao fazer a abertura do Concílio Vaticano lI, deixou claro que a maior preocupação do momento e do futuro da Igreja não era tanto com a doutrina, pois esta já estava estabelecida e bastante conhecida.

"De fato, ao suceder uma época a outra, vemos que as opiniões dos homens se sucedem excluindo umas às outras e que muitas vezes os erros se dissipam logo ao nascer, como a névoa ao despontar o sol. A Igreja resistiu aos erros de todas as épocas e frequentemente também os condenou, em certas ocasiões, com bastante severidade. Hoje, pelo contrário, a Esposa de Jesus Cristo prefere empregar a medicina da misericórdia, antes de empunhar a arma da severidade. É melhor mostrar a validade da doutrina do que renovar condenações. A Igreja deseja mostrar-se Mãe amorosa de todos, benigna, paciente e cheia de misericórdia e bondade também para com os filhos dela separados."

Se na abertura do Concílio São João XXIII anunciou essa boa-nova, o beato Paulo VI a confirmou em alocução no encerramento da última sessão pública do Concílio Vaticano Il, em 7 de dezembro de 1965, quando disse: "Em vez de diagnósticos desalentadores, pensou-se em dar remédios cheios de esperança, para que o Concílio falasse ao mundo atual, não com presságios funestos, mas com mensagens de esperança e palavras de confiança".

Seguindo esse caminho de esperança, São João Paulo II em sua encíclica Dives in Misericordia, nº 2, e em tantos momentos de encontro com a realidade, afirmava que o futuro da humanidade deveria ser o tempo da misericórdia. "A verdade revelada por Cristo a respeito de Deus Pai das Misericórdias permite-nos vê-lo particularmente próximo do homem, sobretudo quando este sofre, quando é ameaçado no próprio coração de sua existência e da sua dignidade. Por esse motivo, na atual situação da Igreja e do mundo, muitos homens e muitos ambientes, guiados por vivo sentido de fé, voltam-se quase espontaneamente para a misericórdia de Deus."

No dia 13 de março de 2013, o mundo foi surpreendido, na janela do Vaticano, por um homem eleito pela ação do Espírito Santo, para ser o papa da misericórdia, para uma Igreja da misericórdia. Nele despontou algo novo que começou a despertar a atenção da humanidade. Não é uma ruptura, mas um passo adiante, possibilitando ao sofrimento humano uma nova luz e o eficaz remédio da misericórdia, ao alcance de todos.

Em entrevista feita pelo Pe. Antonio Spadaro em 2013 à revista La Civiltà Cattolica, Francisco disse: "Vejo com clareza de que aquilo que a Igreja mais precisa, hoje, é a capacidade de curar feridas... Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar ao ferido grave se tem colesterol alto ou diabete. Devem curar-se as feridas, depois procurar falar de tudo o resto. Curar as feridas! É necessário começar de baixo".

Fr.Luiz S. Turra, OFMCap