Liberdade e respeito

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21/01/2015 - 00:00

Na semana que passou, o mundo foi abalado pelo assassinato de 12 pessoas na sede do jornal satírico Charlie Hebdo, de Paris; seguiram-se mais mortes de pessoas inocentes e também dos autores dos assassinatos da sede do citado jornal. A questão continua a render e, agora, em várias partes do mundo islâmico, a ira volta-se contra os cristãos e seus templos que, aliás, também foram alvo das caricaturas envenenadas do Charlie...

Quem matou os jornalistas achou que estava vingando a honra de Maomé e a fé dos muçulmanos, que teriam sido ultrajadas pelas publicações do Charlie Hebdo; os responsáveis pelo Charlie, por sua vez, acharam que estavam exercendo seu “sagrado” direito de liberdade de expressão. Seguiu-se uma manifestação colossal na França e em outros países em favor da liberdade de imprensa e de expressão e de imprensa.

A questão toda merece uma reflexão serena, nem sempre possível no calor dos acontecimentos. Até onde vai a liberdade de expressão e de imprensa? É irrestrita? Até onde vai a própria liberdade humana? É certo, em nome de Deus, fazer violência e matar quem nos ofende ou contradiz as nossas ideias e convicções religiosas? É certo, em nome da liberdade de imprensa, atacar e ridicularizar as convicções mais sagradas das pessoas?

A liberdade foi e continua a ser uma das questões mais complexas da existência humana. Ela é uma capacidade que Deus deu ao ser humano e que lhe confere uma dignidade superior à dos outros seres deste mundo. Pela liberdade, o homem é capaz de fazer escolhas autônomas, para o bem e para o mal. O próprio Deus respeita a liberdade da criatura humana, mesmo quando não aprova suas escolhas.

O homem nem sempre consegue lidar com a própria liberdade; o uso que dela faz não é indiferente e as suas escolhas também levam a consequências contrastantes entre si. Por isso, dizemos que há um bom uso e um mau uso da liberdade. O uso é bom quando faz com que seu exercício leve ao verdadeiro objetivo da existência humana: a vida digna, o respeito ao próximo, a paz da consciência, o mérito e a glória do Criador, que deu a liberdade ao homem.

Há limites para a liberdade? Certo que sim, pois nossa liberdade não é ilimitada. Nossa liberdade pessoal tem seu limite na liberdade e na dignidade do próximo. Nossas próprias escolhas implicam num limite à liberdade; quem escolhe a, renuncia a escolher b. As normas comuns do convívio põem limites à liberdade individual, em vista de um bem maior. Mas esse limite da liberdade de pensar, dizer, decidir e fazer deve ser posto pelo próprio sujeito da liberdade, ou assumido livremente por ele. E nisso está o mérito ou demérito no uso da liberdade: somos responsáveis pelas nossas escolhas e assumimos as consequências de nossas decisões.

Até onde vai a liberdade de expressão? Não é preciso colocar um limite externo: o limite deve ser posto pela própria pessoa, no exercício autônomo de sua liberdade. Assim, tanto os jornalistas do Charlie Hebdo quanto os seus assassinos respondem pelos seus atos. Não é o fato de serem livres, que todas as suas ações são boas. O julgamento sobre o bom ou mau uso da liberdade depende dos padrões éticos, culturais e morais da sociedade.

Se, de um lado, é absolutamente inaceitável praticar violência ou matar o próximo em nome de Deus, ou para vingar supostas ofensas, também não é aceitável que, em nome da liberdade pessoal, se humilhe, desrespeite e despreze o próximo. O senso comum condena a violência verbal, os preconceitos raciais, sociais e religiosos, a ridicularização e o bullying; fazer troça dos humilhados e feridos, não desperta apreço para quem o pratica... O que dizer da perseguição, desprezo e violência por causa das convicções religiosas, que são algo sagrado e muito interior à consciência das pessoas?

A questão não é colocar limites externos à liberdade, mas recuperar algo muito simples e fundamental para a convivência: o senso do respeito na relação com as pessoas. Trata-se de um “sensor” não ajustável com o controle remoto, mas regulado pela fórmula bem simples e já conhecida desde tempos remotos: “não faças aos outros o que não gostarias que fizessem a ti”. Sem esse regulador delicado, adquirido pela educação, todas as tempestades verbais e discussões acaloradas sobre a liberdade de expressão não levam a nenhuma solução boa.


Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO - Edição 3034 - 21 a 27 de janeiro de 2015


Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo