Corpus Christi: corpo de Deus no corpo humano - Pe. Gilberto Orácio

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03/06/2015 - 11:30

“E o verbo se fez carne e habitou entre nós...” (Jo. 1, 14).

A celebração de Corpus Christi deveria nos aproximar mais da realidade que somos: humanos. Mas, esse humano foi dignificado pela presença do impronunciável na nossa carne, na nossa pele... Agora, Deus tem um corpo, mas não um corpo vago, um corpo etéreo, um corpo iluminado, distante de nós. Um fantasma! Deus tem um corpo igual ao meu, igual ao seu, igual ao de todos os seres humanos. E esse corpo de Deus magnificamente transcende toda a humanidade. É o que nos faz pensar a oração pós comunhão na Solenidade da Ascensão do Senhor:

“Deus Eterno e Todo Poderoso que nos concedeis conviver na terra com as realidades do céu, fazei que nossos corações se voltem para o alto, onde está junto de vós a nossa humanidade.”

Nós fomos transcendidos por partilhar com Deus da nossa humanidade. E d’Ele recebemos a sua divindade. Houve, na verdade, uma troca de dons também referidos na mesma solenidade na oração sobre as oferendas. O que era nosso, foi assumido por sua natureza. Um homem assim só podia ser verdadeiramente Deus entre nós e com a nossa carne.

Ao ter um corpo como o nosso, Deus assume as nossas vidas, o que somos, nossos planos, nossas incertezas, nossos sofrimentos, nossa morte. Mas, nos oferece o que tem de mais precioso: a ressurreição. O corpo de Deus não é algo longe de nossa compreensão, algo de difícil acesso, mas algo muito próximo de nós: o Eu. O mais profundo de mim. No corpo de Deus é possível enxergar as maravilhas e as misérias humanas, as conquistas e as derrotas, o nascimento e a aniquilação. É ter diante dos olhos não só o belo, mas também a feiura. Não só o rico, o esplendoroso, mas também a pobreza, a fraqueza, o nada.

Quando olhamos para o Corpus Christi – o Corpo de Cristo – como que num raio de tempo, contemplamos toda a humanidade que jaz sob o peso do pecado e da intolerância humana. Enxergamos o corpo de Cristo nu, pendurado à nossa frente. É como diz a poetisa Adélia Prado:

“E teu corpo na cruz, suspenso/E teu corpo na cruz sem panos: olha para mim./Eu te adoro, ó Salvador meu/ que apaixonadamente me revelas/a inocência da carne./ Expondo-te como um fruto/ nesta árvore de execração/o que dizer é amor,/amor do corpo, amor./ Ó mistério, mistério,/suspenso no madeiro/o corpo humano de Deus.”

Ao ler Adélia Prado, penso numa poetisa desesperada gritando e se lamentando ao ver o corpo de Deus demasiadamente humano. Mas, simultaneamente, vislumbro o espanto e a alegria de ter alguém tão excelso (fascinante, misterioso e tremendo), numa posição tão nossa, tão Eu. O corpo de Deus é o corpo do ser humano revestido daquilo que ele é: carne e sangue. Acredito que seja por isso que fazemos os tapetes para o Santíssimo passar. É para mostrar para Ele, o Senhor, o quanto é um de nós e o quanto se agrada com nossas brincadeiras de colorir.

Na habitação do Verbo Divino entre nós, Deus não olha mais para nós lá de longe, do céu. Mas, ele olha o mundo de dentro de nós. Ele está em nós. Ele é um de nós. A partir dessa certeza a comunidade joanina escreveu: “O que desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao verbo da vida, porque a vida se manifestou e nós a temos visto...”(1Jo. 1, 1 – 2ª). O Deus que estava “preso” no Santo dos Santos, agora está na rua, na pele das pessoas, no suor dos trabalhadores, na carne de todo ser humano. Ele tornou-se igual a nós e por isso, podemos tocá-lo, ouvi-lo, vê-lo e apalpá-lo. Ele tem o nosso cheiro. É a nossa feição. É a cara da dor e do sofrimento. É como nos disse o Documento de Puebla no número 31 e seguintes falando-nos das feições de Cristo sofredor. Que feições são essas? São “feições de crianças, golpeadas pela pobreza, impedidas que estão de realizarem-se, crianças abandonadas e muitas vezes exploradas; feições de jovens desorientados e frustrados; feições de indígenas e afro americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres entre os pobres; feições de camponeses que vivem relegados, sem terra, em situação de dependência interna e externa; feições de operários mal remunerados; feições de subempregados e desempregados, despedidos pelas duras exigências das crises econômicas; feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades (cracolândias e moradores da rua); feições de anciãos cada dia mais numerosos.”

As situações se repetem hoje como na época em que esse texto foi escrito (1979) e a feição de Cristo continua desfigurada. Compete a cada uma das pessoas comprometidas com o projeto de Jesus a não só participar da procissão de Corpus Christi, mas nos dias que seguem continuar a caminhada na direção do Cristo sofredor. Pois, “entre nós está e não o conhecemos; entre nós está e nós o desprezamos.”

Pe. Gilberto Orácio de Aguiar - Doutor em Antropologia e Mestre em Ciências da Religião