A misericórdia: diálogo de corações - Pe. Gilberto Orácio

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26/06/2015 - 11:15

Na expressão latina de misericórdia o termo, segundo Jean-Yves Lacoste (2014), “emana do homem misericors, aquele cujo coração reage diante da miséria do outro. Vale dizer que a misericórdia visa a um dos aspectos da sensibilidade humana. No entanto, por um antropomorfismo decidido, é a Deus que a versão latina da Bíblia transfere este atributo.” Portanto, Deus é misericordioso por sua própria natureza. Isto é, age com compaixão, a partir das entranhas, sentindo a dor do ser humano e vindo ao seu encontro (Cf. Ex. 2, 23 – 25). Misericórdia e compaixão se encontram no coração.

Jesus Deus em nossa realidade não age diferentemente, senão como Deus sempre agiu: a partir da misericórdia (Cf. Mt. 9, 36). E as multidões sentiam o poder misericordioso do coração de Jesus, pois da mesma (misericórdia) provinha a sua autoridade (Cf. Mc. 1, 21 – 28). E sua autoridade não procedia de alguma prerrogativa humana (status), mas procedida do próprio Deus que era Jesus. As palavras e gestos de Jesus não são palavras decoradas e gestos ensaiados. São coisas do coração. E por isso, atingem o coração das pessoas que o escutam ou o veem agindo. Existe um diálogo do coração de Jesus com o coração das pessoas que se encontram ao seu redor. E é algo direto. Sem mediação, sem burocracia. Somente sob o controle de uma lei: a lei da misericórdia. E a misericórdia que nada mais é do que o agir de um coração compassivo, que sente o coração da outra pessoa. Sente de dentro da pessoa. Sente o que a pessoa está sentindo.

Quando Jesus olha para a multidão faminta e sente compaixão, ele não se deixa basear em estatísticas e nem confia nas desculpas esfarrapadas dos discípulos (Cf. Mt. 9, 35 – 38; 14, 14 – 16), tentando fugir à situação. Mas, ele mesmo se deixa comover pela misericórdia. E é nesse momento, que Jesus age diferente dos religiosos de seu tempo e de muitos de hoje. E o povo percebe que em Jesus existe algo diferente, algo de novo e exclama: “Um grande profeta surgiu entre nós: Deus voltou os olhos para o seu povo” (Lc. 7, 16). Em outras palavras, era o que já expressava o Eclesiástico: “Deus usou de misericórdia para conosco” (Eclo. 50, 24). E por isso, também nós respondemos na celebração da eucaristia: “Ele está no meio de nós!” Essa proclamação de fé é porque nós o sentimos agindo em nosso meio como um Deus misericordioso, capaz de salvar por inteiro o ser humano.

A misericórdia é uma estrada de mão dupla. Assim como recebemos misericórdia de Deus, devemos retribuir a mesma para com os outros (Cf. Lc. 6, 36). É dada a cada pessoa cristã, como filha de Deus, a tarefa de exercer a misericórdia. A misericórdia atinge todos os nossos sentidos. Partindo do coração, atinge a visão real que devemos ter das pessoas, bem como deverá também modificar nossos comportamentos. Atitudes misericordiosas expressam nossa caminhada de conversão. De forma errada, podemos acreditar que a conversão acontece de uma vez por todas, mas, é a cada dia que observamos o que precisamos alterar em nossas atitudes e manifestar nossas boas obras, obras de conversão.

As obras de misericórdia que devemos realizar, atestando nossa conversão, devem estar conectadas com aquilo que Jesus nos pede nos Evangelhos: “Portanto, tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles. Essa é a Lei e os Profetas” (Mt. 7, 12).  Nada de novo, mas é algo exigente que solicita sempre de nós uma atenção redobrada sobre o que podemos fazer por aquela pessoa que se encontra ao nosso lado e precisa de nós. As obras de misericórdia estão para além daquelas que aprendemos na catequese. Elas dizem respeito ao diálogo que travamos com as pessoas desconhecidas no dia a dia. Nesse sentido, a misericórdia é o diálogo do coração. Pois, nos coloca em sintonia com o ritmo do coração de Deus e em seguida entramos no ritmo do coração daquela pessoa que é a nossa mais próxima (Cf. Lc. 10, 29 – 37). Assim, se estabeleceu o diálogo de corações. Entretanto, é necessário estarmos atentos/as, pois o nosso próximo muda a todo instante. E quem pensamos ser o nosso único próximo, é apenas um próximo que requer atenção tanto quanto qualquer outro.

A misericórdia renova a vida, uma vez que renova o coração e as nossas atitudes. Conversão, misericórdia e compaixão estão entrelaçadas pelo coração. São as atitudes que favorecem a transformação de um coração de pedra num coração de carne. Um coração novo capaz de ter misericórdia (Cf. Ez. 36, 26; Jr. 31, 31 – 34). Essa transformação permitirá que o centro das atenções da pessoa que segue Jesus, não seja mais o templo, ou as ações religiosas, mas “o amor (misericórdia) de Deus que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que ele nos deu” (Rm. 5, 5).      

Pe. Gilberto Orácio de Aguiar - Doutor em Antropologia e Mestre em Ciências da Religião