Igreja nos espaços virtuais e renovação pastoral

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Arcebispo de São Paulo envia Carta ao Povo de Deus na Arquidiocese sobre os novos desafios pastorais
Publicado em: 25/03/2020 - 09:45
Créditos: Redação

São Paulo, 24 de março de 2020

“Abriu-lhes o entendimento” (Lc 22,45)

Aos Bispos Auxiliares, Padres, Diáconos, Religiosos e Leigos da Arquidiocese de São Paulo

 

Caríssimos/as:

É estranho escrever-lhes, passados apenas poucos dias desde o convite convicto que lhes fiz a participar do início da assembleia sinodal arquidiocesana, cuja primeira sessão deveria ter acontecido no dia 21 de março. Em poucos dias, as coisas mudaram radicalmente, a ponto de termos suspendido, não apenas os trabalhos da assembleia sinodal, à espera de tempos melhores, mas também as celebrações das Missas e demais Sacramentos, atos religiosos e ações pastorais presenciais!

A pandemia da COVID-19 nos obrigou a fechar nossas igrejas e estamos todos confinados em casa, por causa da gravidade da situação sanitária. O novo Coronavírus alastra-se rapidamente e já vamos contando os mortos por causa da nova doença, para a qual não se tem ainda uma vacina, nem tratamento resolutivo. Neste momento, a única medida cabível para bloquear a difusão da pandemia é o isolamento social, permanecendo todos em casa, de quarentena, por algum tempo. Esperamos que isso ajude a diminuir os efeitos dessa pandemia, sem tantas vítimas e perdas de vidas. Nunca é demais repetir, na linha da Campanha da Fraternidade deste ano: a vida é dom e compromisso de fraternidade. Cuidemos bem uns dos outros e sigamos as orientações das Autoridades sanitárias para a prevenção e o cuidado dos doentes.

Nesses dias, pus-me a refletir sobre as lições dessa situação e penso que ela tem tudo a ver com a proposta do nosso sínodo, que chama à “comunhão, conversão e renovação missionária” de nossa Igreja em São Paulo. De um momento para outro, não estamos podendo contar com nossas igrejas e espaços pastorais para encontros e celebrações presenciais, nem mesmo podemos sair de casa para as atividades pastorais ordinárias. Pararam os modos e métodos de trabalho, aos quais estávamos acostumados. Mas a Igreja não pode parar, os pastores e as pastorais, cada um de nós, não podemos parar, nem ficar longe do povo neste tempo medo e angústia. Não podemos abandonar as pessoas a si mesmas, nem deixar de cumprir nossa missão que, de toda maneira, não entrou “em quarentena”. Não podemos deixar de levar a Palavra de Deus a todos, nem de nos manifestar ao mundo, ou de levar conforto espiritual e religioso ao povo, justamente no momento em que ele mais precisa disso! Mas como faremos isso, se temos de ficar em casa e longe de contatos presenciais?

Convido todos a fazermos o discernimento da fé sobre os “sinais dos tempos” e sobre o que está acontecendo. Será que o Espírito Santo, animador e guia da Igreja, não está querendo nos dizer algo nesta hora? Precisamos colocar-nos à escuta daquilo que o Espírito diz à nossa Igreja, em São Paulo (cf Ap 2-3), neste tempo de pandemia. Como o Apóstolo, às portas de Damasco, perguntemos também nós com sincera humildade: “Senhor, o que queres que façamos?”

Penso que o Espírito de Deus está nos ajudando a cair na realidade: precisamos rever nossos modos de estar com o povo, de fazer pastoral, de nos comunicar e de interagir com ele. A pesquisa do sínodo, de 2018, deixou muito claro que um dos problemas é nossa escassa proximidade em relação ao povo, que somente poucos católicos estão em contato conosco, e nós com eles; que nossa comunicação evangelizadora alcança apenas uma pequena porcentagem dos católicos, sem falar dos demais. Ao mesmo tempo, mostrou que, com nossos eventos religiosos presenciais não alcançamos mais que 30% dos nossos católicos e isso, de maneira muito precária e superficial.

Lendo com atenção e interpretando os dados da pesquisa e do levantamento paroquial, concluímos que devemos mesmo “converter” nossa maneira de fazer pastoral e de evangelizar. Sem o contato com as pessoas, a Igreja deixa de ser “testemunha de Deus na Cidade”. O encontro com as pessoas – alguma forma de encontro - faz parte da natureza da Igreja e da nossa missão. As coisas são assim não porque nós escolhemos que seja assim, mas porque essa é a lógica da Encarnação do Verbo, escolhida por Deus; e também é a lógica da natureza “sacramental” da Igreja: ela é mediadora da ação e da graça de Deus através das muitas formas de encontro pessoal.

Na cultura da nossa grande Cidade, como fazer acontecer essa “lógica sacramental” da vida e da ação da Igreja? Como fazer que continue acontecendo nos novos modos de vida da urbe? Precisamos repensar nossa evangelização, nossa pastoral e o modo de ser Igreja e de fazer evangelização e pastoral na grande Cidade, para alcançarmos as pessoas e sermos fiéis à nossa missão. Como promover essa necessária e urgente mudança e conversão pastoral-missionária?

Eis que um vírus minúsculo está nos obrigando a repensar nossa ação evangelizadora e pastoral, sem podermos contar com igrejas e espaços pastorais abertos, sem as organizações e estruturas pastorais que, tantas vezes, nos parecem imutáveis, e sem contar com a presença física do povo perto de nós! Somos obrigados a nos repensar para alcançar o povo, para estar em contato com as pessoas, levando o Evangelho a elas, sendo sinal de conforto e esperança para tantos desalentados e outros tantos desiludidos e órfãos das ilusões da felicidade e salvação oferecidas pelo ter, o poder, o prazer e todas as promessas de vida e felicidade sem Deus.

Não deixemos de acolher, embora a duras penas, as lições de conversão pastoral e missionária que esse minúsculo e assustador Coronavírus está nos ensinando. Mesmo suspenso, o sínodo continua a nos chamar à reflexão e à ação. Para ajudar nessa reflexão, relaciono a seguir algumas indicações possíveis de “conversão e renovação pastoral e missionária”, que já podemos implementar, sem demora. Não podemos perder tempo; nossa Igreja não pode ficar “de quarentena”, só porque não estamos em condições de realizar de maneira presencial nossa ação evangelizadora e pastoral. Mais do que nunca, devemos estar “próximos” das pessoas e zelar pela “comunhão” eclesial, num momento em que há grande risco de dispersão do povo de nossas comunidades.

Mantenhamo-nos ligados e unidos ao povo de nossas comunidades, para que elas continuem sendo “pastoreadas” e não se sintam abandonadas e sozinhas, justamente quando atravessam “o vale escuro” e sentem por perto “as sombras da morte” (cf. Sl 22). Animemos nossas comunidades e as pessoas, individualmente, para continuarem a ser “testemunhas de Deus na Cidade”. Usemos as várias formas possíveis de contato, demos o máximo de apoio às famílias, “Igrejas domésticas”, e incentivemos o fortalecimento dessas “Igrejas nas casas”, conforme Diretrizes da CNBB. Cuidemos dos enfermos, mantenhamos contatos com eles, mesmo sem ser físico. Mobilizemos todo tipo de “pastorais” e grupos organizados de nossas Paróquias, para que se mantenham unidos e ativos, mesmo não podendo sair à rua, nem reunir grupos. Existem novos modos de fazer isso e devemos nos adequar, para usá-los.

Se os expedientes paroquiais e as igrejas estão fechados e o povo não pode ir a nós, nem por isso deve cessar a ação da Igreja. Está na hora de ser “Igreja em saída”, de procurar, de ir ao encontro, de “visitar” o povo nas suas casas, nos hospitais e nos muitos lugares onde as pessoas vivem, mesmo sem que nós mesmos saiamos de casa. Está em tempo de organizar nossas listas de contatos com os muitos grupos e com as famílias da Paróquia: por telefone para os casos mais necessitados, pois se torna mais pessoal; pelos “grupos” de email e Whatsapp, que podem ajudar a multiplicar a comunicação interpessoal; mediante as várias mídias sociais à disposição. Essas listas já estão organizadas? Usemo-las intensamente para o contato com o nosso povo. Ainda não temos? Corramos, pois vivemos uma “hora da graça”, que não podemos desperdiçar! Não sabemos lidar com isso? Chamemos alguém para ajudar! Há muita gente disposta a fazê-lo, basta pedir. E nós mesmos, também podemos aprender!

“E não se esqueçam dos pobres”: essa foi a recomendação dos apóstolos a Paulo e suas Comunidades. Junto com os idosos e os doentes, os pobres e os moradores de rua são, neste momento e sempre, nossas “ovelhas” mais necessitadas de atenção. Deus abençoe e recompense todos os que se dedicam ao cuidado da saúde do povo. E recompense muito todas pessoas, grupos e organizações que continuam a cuidar dos pobres e a praticar as “obras de misericórdia”, de formas novas e criativas. Peço às paróquias e todas as organizações eclesiais que continuem e até multipliquem as ações em favor dos pobres e das organizações eclesiais que cuidam deles em nosso nome. Os pobres precisam continuar a comer, a vestir, a se lavar, a usar remédio... Escutemos os apelos que já nos chegam da Missão Belém, Arsenal da Esperança, Fraternidade “O Caminho”, Aliança de Misericórdia e tantas outras, mesmo em cada paróquia.

Por último, recomendo aos padres que também pensem logo na continuidade da manutenção de suas paróquias e de todas as necessidades da Igreja. Sem povo nas igrejas, as coletas não vêm, o dízimo acaba, as quermesses não se fazem... E então, o que vai acontecer? As “obrigações” não diminuem e precisam ser enfrentadas igualmente. Tenhamos a certeza de que, junto com esta crise sanitária, já está chegando uma grave crise econômica para o País e para todo o povo. Não ficaremos livres disso. E então, o que devemos fazer? Não esperemos que “alguém de fora” venha resolver nosso problema...

Também aqui se requerem várias medidas imediatas e criativas para continuar a prover à necessária sustentação das nossas paróquias e de toda a Arquidiocese. Proponho que cada paróquia pense, junto com o seu Conselho Econômico, sobre a maneira de continuar a manter ativas as doações e ofertas do dízimo, expondo aos paroquianos os motivos, que são compreensíveis para quem está ligado à Igreja. Há despesas fixas, que precisam ser enfrentadas, além da caridade, que não pode parar. Também aqui, os cadastros dos dizimistas e das famílias de cada paróquia precisam ser atualizados e tomados nas mãos, para os contatos por email e outras formas de mídias, que não sejam “abertas” (não é aconselhável usar o Facebook ou Twitter para isso). Indicar a conta bancária da Paróquia, para a qual podem ser feitas doações e recolhidos os dízimos. Aqui há muito trabalho a ser feito no sistema de “home-office”, se não for feito diretamente na Secretaria paroquial durante este tempo de quarentena. É importante que tomemos consciência de que essa questão é muito séria e as paróquias que não se organizarem logo, terão grandes dificuldades para a sua manutenção e para honrar suas obrigações.

Recomendo com insistência que, desde logo, as paróquias e também a Mitra Arquidiocesana, a administração central e das Regiões e Vicariatos façam um planejamento emergencial de redução das despesas de, ao menos, 15 a 20% de seu orçamento deste ano. Prevemos entradas menores e tempos difíceis. Comecemos a reduzir as despesas em tudo o que for possível. Não se façam novos investimentos e frentes novas de despesas. Todo dinheiro gasto, seja bem medido e todo o supérfluo e dispensável, neste momento, seja cortado. Em cada Região Episcopal, as administrações locais estejam bem atentas às orientações dadas pela Administração Central, através da Procuradoria da Mitra.

Caríssimos e caríssimas, tempos de crise requerem medidas excepcionais. Tentemos acolhê-las, como serviço prudente e responsável no exercício da missão comum que foi confiada a nós todos. E trabalhemos com confiança, não deixando de transmitir esperança também ao nosso povo. Sejamos “testemunhas de Deus na Cidade” neste tempo de crise e desorientação. Depois de algum tempo, sairemos dessa crise mais fortes e com novas lições aprendidas, que serão úteis também para os “tempos melhores”, que preparamos e esperamos, com a ajuda de Deus. Coragem, confiemos em Deus e vivamos a caridade e a comunhão eclesial.

Agradeço os muitos trabalhos que fazem pelo povo e a dedicação aos pobres e doentes nas comunidades, hospitais e casas. Os padres continuem a celebrar a Eucaristia pelo povo, em privado, enquanto não for possível reunir novamente o povo nas igrejas. Na medida do possível, transmitam as celebrações através das mídias e incentivem as pessoas a rezarem nas famílias e a acompanharem as celebrações da Igreja pelas mídias. Acompanhemos também as palavras e iniciativas propostas pelo Papa Francisco, que está muito preocupado com a situação sanitária do povo. Rezo por todos, para que também a sua saúde seja preservada. Cultivem a união e o cuidado recíproco, especialmente dos irmãos mais idosos e daqueles que têm a saúde fragilizada.

É previsível que, durante a Semana Santa e o Tríduo Pascal ainda estaremos em quarentena e teremos que celebrar sem o povo nas igrejas. Por isso, em breve, darei orientações específicas para isso em nova carta. Ao mesmo tempo, oriento que procurem ler as orientações já dadas há poucos dias para toda a Igreja, a esse respeito, pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

Coragem e esperança! Deus abençoe a todos!

 

Cardeal Odilo P. Scherer

Arcebispo de S.Paulo