Alexandra Loras, uma mulher sem fronteiras

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Em conversa exclusiva com O SÃO PAULO, consulesa da França no Brasil, falou sobre sua trajetória pessoal e como tem lutado pela igualdade racial
Publicado em: 04/01/2016 - 10:30
Créditos: Jornal O SÃO PAULO - Edição 3082

Por Nayá Fernandes

Crepe doce ou salgado? Perguntei ao Raphael Loras, que, aos 3 anos de idade, foi para a cozinha comer crepe, junto ao amigo que mora na casa em frente à dele. Rafael vive no Brasil com os pais, Alexandra Baldeh Loras e Damien Loras, a consulesa e o cônsul-geral da França no Brasil. A casa consular fica em uma rua calma do Jardim Europa e quem chega é surpreendido por um enorme quadro da Marianne, ou Mariana em português, a alegoria sob a forma de mulher que representa a república francesa e seus valores.

A entrevista com Alexandra Loras aconteceu exatamente 60 anos após o dia em que a jovem estado-unidense Rosa Parks se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um branco se sentar, tornando-se o estopim do movimento que foi denominado boicote aos ônibus de Montgomery e posteriormente viria a marcar o início da luta antissegregacionista. “Desde lá, muita coisa mudou nos Estados Unidos da América (EUA) e negros e brancos podem frequentar os mesmos restaurantes ou escolas. Mas isso foi há apenas 60 anos e hoje o País tem um presidente afrodescendente”, ressaltou a Consulesa.
Filha de uma francesa com um imigrante do Gâmbia, no oeste do continente africano, Alexandra nasceu na periferia de Paris e, por ser negra, desde pequena sofre preconceito. “Tive sorte de frequentar, desde os 11 anos, ótimas escolas católicas e conseguir entrar na melhor escola de Ciências Políticas da França, onde me formei em Gestão da Mídia. Minha maior dificuldade fui eu mesma, pois achava que não poderia como negra e mulher estudar naquela escola da elite. Contudo, quando entrei e percebi que era uma das melhores alunas da minha turma, me dei conta de como a sociedade havia me marcado à ferro, me condicionado a preconceitos contra mim mesma.”

Ela está no Brasil desde 2012, mas já morou na Alemanha, Inglaterra, Espanha, México, EUA e Suécia, e conheceu mais de 50 países. No dia da entrevista, ela estava voltando de um evento na Missão Paz, instituição que acolhe e acompanha imigrantes e refugiados em São Paulo. “Acho muito interessante ver o trabalho da Igreja junto aos imigrantes e refugiados africanos e haitianos, sobretudo. Uma vez por mês, dou aulas de interculturalismo na Missão Paz”.

Tirar do branco de hoje a mochila do passado

“Fomos condicionados, de geração a geração, a pensar que o homem é superior à mulher e que o homem branco é superior ao negro. Mas vejo como essencial retirar dos ombros dos brancos a mochila do passado, porque a escravidão não é culpa de quem nasceu hoje. O que não significa, porém, que não precisamos reequilibrar as relações”, afirmou.

Para ela, o que sobrevive é uma “errância” do passado e, por isso, é necessário pensar bem o que ensinar às crianças. “Às pessoas que pensam não haver racismo no Brasil, eu pergunto: ‘Mas, quantos amigos negros você tem? Você tem 57% dos seus amigos que são negros? Ou seja, a porcentagem de negros no Brasil?’”

E Alexandra convida a imaginar um mundo ao inverso, em que tudo o que foi feito pelos negros fosse considerado sutil e maravilhoso e todas as referências históricas fossem pessoas negras. “Historiadores, filósofos, inventores. Todas as personalidades, inclusive Deus, Jesus Cristo e os anjos, fossem retratados negros. E a única referência sobre os brancos nos livros de história seria aquela de que eles foram escravizados. Quando as crianças ligassem a televisão, veriam a maioria dos personagens dos desenhos animados e todas as princesas ou rainhas negras. Como seria ver sempre a branca como faxineira nas novelas ou a amante que destrói o casamento dos negros ricos? Não seria chocante? Mas essa é exatamente a realidade dos negros hoje. Os negros nascem nesse mundo. Um mundo em que 85% das crianças negras escolhem a boneca branca como a boazinha e a negra como a feia e a má. Precisamos deixar entrar nos livros didáticos os grandes personagens negros, como o inventor da geladeira, do marca-passo ou da antena parabólica, e lembrar que Machado de Assis e André Rebouças, por exemplo, eram negros.”

Ao ser questionada sobre a presença dos negros na mídia, Alexandra lembra que, num país em que 57% da população é negra, a televisão brasileira tem só 4% de negros e que não são negros puros, mas morenos. “Esses números ficam ainda mais chocantes quando vemos que existe só 2% de loiros verdadeiros no mundo. Será que a representatividade não está acima da realidade?”

Questionar atitudes e suposições que escondem um preconceito “não tão velado assim” é uma das missões da Consulesa, que diz já ter sofrido muito preconceito até mesmo por pessoas que a conhecem e sabem da sua condição econômica e social. “A meu ver, isso prova que o preconceito não é econômico, mas racial. Hoje, no Brasil, falamos de casos com atrizes como a Taís Araújo ou a Majú [Maria Júlia Coutinho, apresentadora de tevê], mas não falamos das milhares de pessoas anônimas que sofrem todos os dias. Eu já sofri racismo e mandei e-mails para os órgãos responsáveis, mas nunca obtive resposta e espero que esta situação mude. Recentemente, foi lançado um Disque Denúncia para casos de racismo, pelo número 136.”

E no Brasil?

Dos países por onde passou, aquele em que Alexandra menos sofreu racismo foi na Alemanha. “Talvez a história tenha ensinado aos alemães que pensar em raças superiores não leva a nenhum lugar. Alemanha é o país da Europa que acolhe mais imigrantes. A média mundial é 10%. Nos Estados Unidos, os imigrantes chegam a 14% e no Brasil representam apenas 0,3% da população, embora a mídia brasileira continue a tratar a imigração como uma grande invasão.”

Ela afirma ver no Brasil uma grande dualidade. “Estamos na terra do acolhimento, do samba, da alegria e, ao mesmo tempo, vemos um genocídio sobre o qual a mídia não fala. Esses dias, fui à Assembleia Legislativa de Maceió, em Alagoas, onde morrem mais jovens negros no Brasil e não havia nenhum deputado na sessão plenária. Tive que esperar mais de duas horas para a chegada de um deputado que abrisse a sessão. Havia ali muitas famílias. As famílias desses jovens não têm voz, nem recursos para um advogado e também têm medo de repressão. Morrem, no Brasil, 156 jovens negros por dia. São 154 mil por ano, mais que a guerra do Vietnã. É um conflito diário constante.”

A Consulesa, que já trabalhou como babá e apresentadora de tevê na França, insistiu que é essencial falar sobre temas como justiça restaurativa, mediação de conflitos, reparação comunitária e diálogo inter-religioso. Em relação ao sistema de cotas raciais, Alexandra admite que elas são humilhantes para os negros e que talvez seja a pior das soluções.

“Porém, se olharmos a história do Brasil, são 127 anos sem cotas em que o País não conseguiu um reequilíbrio de maneira orgânica e natural. Então, vamos continuar assim? Ou deixar que o povo estude e tente outras maneiras para que a igualdade entre negros e brancos aconteça? Para mim, o maior problema do Brasil não é a corrupção, mas o racismo e a desigualdade social. É absurdo pensar que 80% das casas brasileiras ganham menos de R$ 3 mil por mês. Das pessoas que trabalham, 70% são analfabetas técnicas ou funcionais. Quando essa população tiver acesso a estruturas boas para estudar e trabalhar, a meios de transporte, saúde, educação de qualidade, o Brasil vai ter 80% da população com maior poder econômico, maior consumo e um grande desenvolvimento de produção. Mas, se continuarmos assim, estaremos criando uma forma moderna de escravidão. Como é possível viver em São Paulo, a segunda cidade mais cara do mundo, com apenas R$ 1.200 por mês? Isso é outra forma de escravidão”, avaliou Alexandra.

Em família

Carregando o filho nas costas, ao fazer compras em um supermercado perto de casa, Alexandra percebeu que estava sendo seguida pelo segurança do estabelecimento. Isso aconteceu um dia antes da entrevista. Ela disse que demorou a acreditar, mas que o homem a estava seguindo para verificar se ela tinha roubado alguma coisa e chegou a ir até o caixa observar se ela havia pago os itens que pegou. Essa, porém, foi apenas uma das muitas situações de racismo descritas pela Consulesa. Até mesmo quando ela e Damien se apaixonaram – eles se conheceram por um amigo em comum, chefe de Alexandra na tevê em que trabalhava em Paris – foi preciso que ela se convencesse sobre o relacionamento dos dois.

“Eu me autorizei a viver esse amor e escolher que o amor não tem cor. Porque você tem que se autorizar a viver as coisas boas que Deus coloca em seu caminho. Houve pessoas que falaram que fiz ‘macumba’ para conquistar o Damien, o que me fez sofrer muito e demonstra até que ponto chega o racismo ainda hoje.” Alexandra mantém um blog sobre o tema (www.alexandraloras.com) e vai lançar um livro no próximo ano sobre grandes inventores e personalidades negras.

Enquanto ainda estávamos ali e Alexandra me ofereceu o chá de uma das melhores marcas de Paris, Raphael veio correndo e brincando com o amigo, “que ele considera irmão”, contou a mãe. “Gostaria de pedir se podemos encerrar a entrevista, pois passei o dia fora e queria ficar um pouco mais com ele”, disse. Ela me acompanhou até a rua, pediu um táxi com o aplicativo do seu celular e se despediu, com tamanha gentileza que eu vivi, não na imaginação, mas na realidade, o “mundo ao inverso”, que ela mesma sugeriu.