A Praga de Justiniano e São Gregório Magno

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Em sequência a esta série de artigos, destaca-se como a oração é uma atitude fundamental dos cristãos enfrentar as dificuldades
Publicado em: 14/04/2020 - 19:00
Créditos: Redação

No artigo anterior, falamos sobre a atitude dos cristãos em relação aos doentes nas épocas das Peste de Cipriano (250-270 d.C.) e de Antonina (165-190 d.C.), principalmente a partir do relato de São Dionísio. Vimos a importância dada pelos cristãos ao cuidado dos doentes e como esse exemplo foi um dos fatores da cristianização do Império Romano.

Neste artigo, no qual trataremos da chamada Praga de Justiniano, veremos outra atitude considerada essencial pelos cristãos de outrora para enfrentar, como espírito sobrenatural, qualquer epidemia: a oração.

A Praga de Justiniano

A Praga de Justiniano é o nome dado a, no mínimo, 17 ondas epidêmicas que desgraçaram o mundo antigo entre os anos de 541 e 750 d.C. A peste tem o nome do Imperador Justiniano, pois sua primeira onda ocorre durante seu governo do Império Romano do Oriente. A peste bubônica, causadora da epidemia, provavelmente teve início no Norte da África e afetou, principalmente, as regiões próximas ao Mar Mediterrâneo.

As epidemias tinham relação com o comércio marítimo, pois a doença era causada pelas pulgas dos ratos trazidos pelas embarcações. Por isso, a peste demorou a chegar ao norte da Europa, e atingiu, principalmente, o Império Bizantino (o que restou do Império Romano após a queda de Roma) e o mundo islâmico.

As ondas da peste causaram mortalidade em larga escala e foram responsáveis por agudo declínio demográfico. Normalmente se afirma que entre 20% e 30% da população faleceu por causa da Praga de Justiniano. O impacto da doença foi tal que a mão de obra se tornou mais cara, mais terras tornaram-se disponíveis e os exércitos perderam um grande número de homens, o que justificou, segundo alguns historiadores, a diminuição do ritmo das conquistas islâmicas no Império Bizantino.

Vários detalhes da doença foram fornecidos por descrições dá época: a doença tinha início súbito com uma febre. Em poucos dias, inchaços se desenvolviam principalmente na região da virilha, mas também nas axilas, atrás das orelhas e nas coxas. Alguns doentes ficavam em coma, outros deliravam. Depois, grandes pústulas negras apareciam e causavam a morte do doente em menos de um dia. As pústulas não apareciam em todos os doentes, e quem não as desenvolvesse tinha maiores chances de sobreviver, mas com graves sequelas.

A peste, depois do último surto de 750 d.C., desapareceu, até retornar na Baixa Idade Média com a chamada Peste Negra.

Em 590, houve um grande surto da doença em Roma, e, segundo um historiador da época, o bispo Gregório de Tours, o primeiro a ser vitimado pela doença na Cidade Eterna foi o Papa Pelágio II. Em seu lugar, foi eleito por aclamação popular um então monge, de conhecida virtude, ao trono de Pedro: Gregório, que depois seria canonizado e lembrado como São Gregório Magno.

A atitude do novo Papa diante da Peste

Enquanto a cerimônia de entronização do Papa Gregório estava ainda sendo preparada, a epidemia de peste bubônica devastou a cidade de Roma. Diante de uma epidemia cuja causa era desconhecida à época – suponha-se que a doença era transmitida pelo ar, o que não é verdade – e para qual não havia tratamento eficaz, as pessoas podiam tomar duas atitudes distintas: ou fugiam para regiões não atingidas pela doença ou recorriam a Deus por meio de procissões, ladainhas, jejuns e orações.

Diante do caos instalado na Cidade Eterna, o Papa Gregório congregou a população e a exortou com um sermão na Basílica de Santa Sabina para que fizessem penitência, se arrependessem de seus pecados e rogassem pela misericórdia de Deus. São Gregório Magno viu na epidemia uma oportunidade para que os fiéis se aproximassem de Deus, baseado na verdade de fé que Deus, de todo mal, é capaz de tirar um grande bem.

“Nossa presente prova deve abrir caminho para nossa conversão. As aflições que sofremos devem amolecer a dureza de nossos corações (...) Na nossa angústia, Deus nos dá uma esperança renovada, na verdade é o que Ele nos dá quando o profeta diz: “Eu não tenho nenhum prazer na morte do ímpio, mas quero que ele se converta e viva”, clamou São Gregório.

O Papa, então, recordou que Deus é Misericórdia infinita e que rapidamente atenderia as preces do povo caso se arrependesse: “Pois Deus é cheio de misericórdia e compaixão, e é sua vontade que devemos ganhar seu perdão através de nossas orações. Ele não se irritará conosco, por mais que mereçamos (...) Ele, pois, diz que deseja demonstrar sua misericórdia àqueles que O chamam.”

Assim, São Gregório convocou uma procissão dividida em sete grupos que se encontrariam, por fim, na Basílica de Santa Maria Maggiore. Toda a população da cidade acorreu à procissão, crianças e idosos, padres e monges, casadas e viúvas formaram grupos distintos que partiriam cada um de uma igreja de Roma.

Como fez o Papa Francisco, São Gregório pediu a intercessão de Nossa Senhora por meio do Ícone Salus Populi Romani, o mesmo que foi posto na Praça de São Pedro na bênção eucarística dada por Francisco no dia 27 de março deste ano.

Relatos indicam que muitas pessoas morreram durante a procissão, pois a morte pela peste bubônica ocorria subitamente. Entretanto, o surto da peste teve fim depois do ato público de fé. Por causa disso, São Gregório Magno instituiu as Ladainhas Maiores, a serem rezadas no dia 25 de abril, como forma de rogação a Deus em tempos de epidemia e peste.

Não renunciar nunca à oração

As medidas tomadas pelo Papa Gregório Magno para enfrentar a peste de seu tempo podem parecer desarrazoadas a partir de um ponto de vista estritamente científico. Entretanto, se a fé cristã não nega o conhecimento científico, ela não pode renunciar à oração. À época de São Gregório, não se sabia a causa da doença nem como tratá-la adequadamente. Certamente, se o Papa estivesse munido desses conhecimentos, tomaria as decisões sanitárias adequadas para o fim da peste, mas sem abdicar da oração.

A fé e a razão são as duas asas do Cristianismo, como afirmou o Papa Emérito Bento XVI. A reação dos cristãos à peste de 590 que desgraçou a cidade de Roma pode nos ensinar, cristãos do século XXI, o valor da oração perseverante e comunitária, à qual Cristo promete eficácia. Afinal, Ele não disse “Pedi e vos será dado, procurai e encontrareis, batei e a porta vos será aberta”(Mt 7, 7) e “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali eu estarei, no meio deles” (Mt 18,20)?

Em tempos de quarentena sanitária devido ao novo coronavírus, a Igreja renova, por meio do Papa e de seus bispos, o pedido de São Gregório aos fiéis de seu tempo: oração frequente pelos doentes, pelo fim da pandemia e pelas almas do falecidos.

 

Fontes: (Encyclopedia of Pestilence, Pandemics and Plagues, Greenwood Press; História dos Francos de Gregório de Tours)