Religiões a serviço da humanidade

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12/11/2022 - 07:30

No fim de semana passado, o papa Francisco transcorreu três dias no Bahrein, um pequeno reino situado no Golfo Pérsico cuja população é muçulmana em sua grande maioria. Embora também tenha encontrado a pequena comunidade cristã daquele país, o objetivo principal da viagem do papa foi a reunião com líderes de diversas religiões, sobretudo muçulmanos, para dialogar sobre a fraternidade universal e a contribuição das religiões para o entendimento e a paz entre as diferentes religiões e os diferentes povos.

Trata-se de uma preocupação constante de Francisco nos numerosos encontros com lideranças de outras religiões nos sete anos de seu pontificado diante da Igreja Católica. Em 2019, em Abu Dhabi, ele assinou, com o grande Imã Ahmed al-Tayyeb, um documento importante sobre “a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”. No texto, foi assumido o compromisso conjunto de promover e testemunhar a fraternidade no mundo, “casa comum” da inteira família humana. Ao mesmo tempo, foi expressado o desejo de promover a convivência fraterna e a cultura da paz entre as diferentes tradições religiosas, contribuindo para a edificação da sociedade na justiça e solidariedade.

Uma das preocupações reiteradas no encontro dos líderes religiosos do Bahrein foi a necessidade de fazer o dever de casa: a promoção do diálogo sincero no interior das próprias comunidades religiosas e destas com as outras tradições religiosas e as culturas locais. Se, no passado, houve guerras com motivação religiosa, isso deve ser decididamente superado no presente; em vez de conflitos religiosos, é necessário promover a cultura do diálogo, do respeito e da tolerância entre as pessoas que creem, ainda que de modo diferente, e entre suas instituições. Isso não significa que se devam abandonar as convicções de fé pessoais e comunitárias, mas assumir que, claramente, Deus não é adorado e honrado mediante conflitos e violências entre aqueles que dizem crer nEle, nem por projetos de dominação de um grupo religioso sobre outro.

O recente encontro inter-religioso do Bahrein também condenou a instrumentalização do sentimento religioso por ideologias e pela busca e consolidação do poder político. A manipulação da religião e das instituições religiosas como arma política é prejudicial para a paz social e para as próprias religiões. Estas são, por sua natureza, inclusivas e universalistas; mas, quando são atreladas ou equiparadas a partidos ou regimes políticos, elas excluem aqueles que não se identificam com tal partido ou regime. É imoral e ofensivo a Deus usar a religião ou o nome do Todo Poderoso para promover guerras, ódio, violência e morte, ou para justificar sistemas econômicos e sociais promotores de exclusão social e miséria.

Amanhã, 13 de novembro, celebra-se em toda a Igreja Católica o Dia Mundial dos Pobres. Trata-se de mais uma iniciativa do papa Francisco para chamar a atenção para o número enorme de pobres, que, em vez de diminuir, aumenta por toda parte. No Brasil, a quantidade de pessoas que vivem abaixo do nível de pobreza e se alimentam de maneira insuficiente alcançou novamente níveis preocupantes. As louváveis iniciativas solidárias de muitas pessoas e organizações da sociedade civil, junto com os programas emergenciais e assistenciais do governo, apenas conseguem mitigar um pouco essa situação, que causa vergonha e clama por uma profunda reorientação da vida econômica. Como explicar que, num país produtor e exportador de alimentos, haja tantas pessoas em situação de miséria e fome?

O Dia Mundial dos Pobres é uma ocasião para trazer os cidadãos pobres, invisíveis, descartados e desinteressantes para a economia de acumulação ao centro das atenções e reflexões. Como resolver o problema da pobreza e da fome em nosso país e no mundo? O encontro entre líderes religiosos no Bahrein não deixou de abordar esse quadro preocupante, que atinge grande parte da população mundial. Como podem as religiões contribuir para promover a cultura da justiça, da solidariedade e da fraternidade entre as pessoas e os povos, para que todos possam viver com respeito e dignidade?

Enquanto isso, ocorre no Recife o 18.º Congresso Eucarístico Nacional, promovido pela Igreja Católica a cada dez anos. O tema deste congresso, definido há cerca de cinco anos, não poderia ser mais atual: Pão em todas as mesas. Na fé dos católicos, os sinais do pão e do vinho consagrados são o Sacramento de Jesus Cristo, que se entrega inteiramente, corpo e sangue, pela vida da humanidade, “para que todos tenham vida” (cf João, 6,27). A celebração e a participação na Eucaristia implicam a prática do amor fraterno e da partilha generosa do pão com os necessitados.

A fé religiosa, em vez de ser posta a serviço do ódio, da violência e da divisão entre pessoas e povos, pode e deveria ser fonte de dinamismo para a edificação de um mundo mais justo e fraterno, sem exclusões ou violências, onde haja paz e pão na mesa de todos.

Cardeal Odilo Pedro Scherer 

Arcebispo de São Paulo 

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 12 de novembro de 2022