A fé religiosa é preciosa, simples e complexa, ao mesmo tempo. É um dom, que recebemos no Batismo e expressa a condição nova da nossa relação com Deus: somos filhos amados de Deus, a quem podemos chamar de Pai e com quem podemos uma relação de confiante simplicidade, sabendo-nos amados, perdoados e envolvidos pela sua providência amorosa.
Mas, de nossa parte, esta mesma fé teologal precisa ser acolhida, correspondida e desenvolvida. E aí começa a complexidade da fé: nem sempre acolhemos bem esse dom precioso; talvez deixamos de nos orientar por ela, anulando seu efeito na prática da vida quotidiana; talvez somos levados por uma fé mágica ou supersticiosa... Podemos até perder a fé, vivendo como se Deus não existisse, ou nada tivesse a ver conosco.
A violência praticada em nome de Deus vem de uma compreensão equivocada da fé. Deus não é honrado, quando fazemos injustiça ou violência contra algum de seus filhos, ainda que esse tivesse uma fé diversa da nossa, ou fosse mesmo um pecador. Jesus recordou e confirmou palavras dos antigos profetas: Deus não tem prazer na morte do pecador, mas na sua conversão, para que viva (cf Ez 18.23.32).
No 2º Domingo da Quaresma, a Liturgia nos trouxe o texto do sacrifício de Abraão: para pôr a sua fé à prova, Deus lhe pediu que oferecesse em sacrifício o seu filho Isaac; Abraão já estava pronto para fazê-lo, mas então Deus o impediu, pois se tratava apenas de uma prova: “agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu filho único”. E Deus recompensou Abraão com uma descendência numerosa e com uma bênção, que se estendeu para toda a humanidade.
O que Deus esperava de Abraão era uma fé confiante e sem limites; e Abraão foi capaz de fazer os maiores sacrifícios para corresponder a Deus e obedecer àquilo que Deus lhe pediu. A fé purificada e autêntica se traduz na fidelidade e na obediência a Deus. De maneira equivocada, podemos achar que a fé consiste em impor nossas vontades e desejos a Deus, sem buscar a sintonia e a comunhão com Deus.
Uma das qualidades da fé autêntica é a firme adesão a Deus, mesmo nos sofrimentos, e se traduz nesta bela oração do salmista: “andarei na presença de Deus na terra dos vivos; guardarei minha fé, mesmo quando o sofrimento é demais em minha vida” (cf Sl 116, 9-10). Acontece também conosco, como aconteceu com Abraão: a fé é provada no sofrimento. E Deus não deixa sem recompensa a quem fica firme e confia nele, mesmo nas situações mais extremas da vida.
Ainda no 2º Domingo da Quaresma, ouvimos o Evangelho da transfiguração de Jesus. No caminho para Jerusalém, onde se passaria o drama da paixão e morte do Mestre, os discípulos ainda eram fracos na fé e tinham pouca clareza sobre quem, de fato, era Jesus. Sua fé era interesseira, de olho nas vantagens e privilégios pelo fato de estarem com Jesus... A transfiguração, no alto de uma montanha, devia ajudá-los a firmarem sua fé nele, vendo sua glória divina e ouvindo a voz de Deus Pai: “é meu filho amado: escutai o que ele diz” (cf Mc 9,7). Deus socorre nossa fragilidade na fé.
A fé é purificada e cresce na medida em que “ouvimos Deus”. De nossa parte, a fé é resposta a Deus, que se manifesta, de modo especial, na sua Palavra. Jesus é Palavra viva de Deus para nós. Escutar e acolher esta “palavra” nos traz a certeza do amor e da fidelidade de Deus, como aconteceu com São Paulo, a ponto de poder exclamar: “se Deus é por nós, quem será contra nós? Se Deus entregou por nós seu próprio Filho, para resgatar-nos de nossos pecados, não nos daria também tudo o que precisamos e pedimos?!” (cf Rm 8, 31-34).
Somos ainda muito “fracos na fé”, pessoas “de pouca fé” (cf Mt 8,26). A Quaresma nos chama a “purificar o olhar da nossa fé”, a crescer na fé, alimentando nosso espírito na sua Palavra viva e aprofundando nossa comunhão e sintonia com Ele.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo