'Kiaaaaaai!' na Paróquia? Karatê!

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Na Igreja São Vito Mártir crianças e jovens karatecas aprendem os valores da arte milenar nas aulas do sensei Corisco
Publicado em: 19/01/2016 - 10:45
Créditos: Edição 3084 do Jornal O SÃO PAULO – páginas 12-13

O que se espera escutar quando passamos em frente de uma igreja? Cantos litúrgicos, sons de órgãos, o badalar dos sinos ou até mesmo os murmúrios das orações dos fiéis. Mas quem passa perto da Paróquia São Vito Mártir, no Brás, além dos sons que remetem diretamente ao Cristianismo, também pode ouvir o "kiaaaaaail" dos jovens karatecas.

A arte marcial das "mãos vazias", mais conhecida como karatê-dô, chegou ao Brasil em 1908, quando o navio Kassato-Maru aportou em Santos com imigrantes japoneses. No início, eram poucos os brasileiros que se interessavam pela arte vinda do Japão, de forma que foi realmente difícil disseminá-la no país do futebol.

Porém, com muito esforço e fidelidade aos ensinamentos do karatê, a partir da década de 1950, alguns senseis (como são chamados os professores no Japão) passaram a organizar academias nas cidades brasileiras. Paulistas, cariocas e baianos foram os primeiros a recebê-las. A primeira academia de karatê do estilo Shotokan foi organizada pelo professor Mitsuki Harada, na rua Quintino Bocaiuva, no centro de São Paulo. Hoje, para a alegria de pais, professores e, claro, praticantes, o karatê é praticado no salão da Paróquia São Vito Mártir.

Foi a convite do Pe. Michelino Roberto, então pároco, e com o apoio do Pe. João Bechara Ventura, que, há dois anos, o Professor José Alberto de Siqueira Campos, conhecido como Corisco, iniciou um trabalho de karatê com jovens e adolescentes do bairro Brás, na São Vito. Os mais de 40 karatecas inscritos, tanto meninos quanto meninas, passaram a ter aulas três vezes por semana, exercitando, entre outras coisas, concentração, disciplina e persistência. Assim, o desafio de se tornar faixa preta - e tudo o que isso pode significar - passou a habitar o coração e a mente desses jovens.

No entanto, a tradição desta arte marcial e, mais precisamente, o fundador do karatê estilo Shotokan, Gichin Funakoshi, ensinam: aprendê-la verdadeiramente vai muito além de aprender a chutar e socar.

Assim como Funakoshi, o sensei Corisco procura usar a arte marcial para educar os jovens, apropriando-se dela como um meio e não como um fim. Portanto, os ensinamentos não se restringem exclusivamente ao dojô (local onde se pratica a arte), podendo - em verdade, devendo - ser aplicados aos estudos, ao trabalho, ao convívio familiar, às relações sociais e, enfim, à vida. Nas palavras de Funakoshi, "o karatê não se limita apenas ao dojô".

O PROFESSOR

Foi aos 12 anos de idade que o pernambucano deixou a casa dos pais e seus nove irmãos em São José do Egito (PE). Seu destino? A cidade de São Paulo. Sua meta? O karatê-dô. Após anos de treinamentos, cursos, campeonatos, viagens e - claro - muita luta, José Alberto tornou-se o professor Corisco.

Com o objetivo de contribuir com a formação humana dos praticantes, principalmente dos jovens, Corisco fundou a Pináculo, Escola Brasileira de karatê-dô.

Apesar de grande parte das artes marciais terem suas raízes no Oriente e, portanto, trazerem as filosofias e visões de mundo budista e xintoísta, o Professor procura adaptar o karatê aos valores Ocidentais, apoiando-se nas virtudes do Cristianismo.

Exemplo da contribuição católica à Escola Pináculo é a vida de São Damião de Molokai (Damião, o leproso). A partir do livro-áudio de biografia sobre o Santo, Corisco enfatiza a seus alunos os diversos exemplos de coragem e ousadia deixados por ele. O Professor também insiste para que seus alunos aprendam a solucionar as situações adversas, evitando paralisarem-se diante delas, a exemplo de Damíão, que não deixou de servir a Deus e ao próximo mesmo sabendo que pegaria lepra.

ARTE MARCIAL E ESPORTE SÃO DIFERENTES

"Esporte é uma coisa, arte marcial é outra", afirma o Professor de karatê. E acrescenta: "enquanto no primeiro busca-se um resultado esportivo, na segunda, em sua origem, luta-se pela sobrevivência". Segundo Corisco, diante desse contexto, é mais fácil trabalhar os diversos aspectos da formação humana por meio da arte marcial.

Dois exemplos do futebol podem ajudar a compreender essas diferenças. Nas quartas de final da Copa de 2010, no jogo entre Gana e Uruguai, Luis Suárez, atual camisa 9 do Barcelona, impediu - com a mão - o gol que levaria, pela primeira vez na História, uma seleção africana às semifinais. O atacante, punido por um jogo, declarou que fez a melhor defesa do Mundial da África do Sul, além de ter sido ovacionado pelos torcedores da Celeste Olímpica. Igualmente, os argentinos enalteceram Diego Maradona após o Mundial do México, em 1986. Chamado de El Pibe de Oro (O Garoto de Ouro), o atacante, naquela Copa, garantiu de forma desonesta a vitória da Argentina sobre a Inglaterra. Assim como Suárez, Maradona trocou os pés pelas mãos. Não é por acaso que a foto da Mano de Dios (como Maradona definiu seu gol) está exposta no mural da Historia Argentina, na Casa Rosada.

Todos sabem que o esporte em si não levanta a bandeira da desonestidade. Porém, muitos esportes reúnem exemplos da busca pelo resultado e nada mais; exatamente o ponto em que a honestidade pode ser deixada de lado. Além disso, há uma valorização - sobretudo na América latina - da vitória desleal, da cultura de enganar o próximo e de transgredir as regras, por mais que isso não seja defendido pelo esporte em si.

As artes marciais também são passíveis de deturpação. Corisco chama a atenção para o cenário que as artes - infelizmente - vivem hoje. "É o que se observa quando assistimos a eventos como o UFC, que carregam o nome das artes marciais (MMA - Mixed Marcial Artes -Artes Marciais Mistas, em português), mas que se assemelham às rinhas de galo, rebaixando o ser humano à condição inferior a dos animais”, pontua o Sensei.

Segundo Corisco, em ambientes como o do UFC, valores como respeito e lealdade são deixados do lado de fora do ringue, ao passo que as atenções se voltam exclusivamente às medalhas, à fama, ao dinheiro e à idolatria de homens e mulheres que, via de regra, não se incomodam em ver seu adversário caído e envolto em sangue. Quão longe estão do verdadeiro caminho das artes marciais; é o que, possivelmente, Gichin Funakoshi constataria.

O KARATÊ NA SÃO VITO

Paralelamente à formação corporal que o karatê oferece, o Professor Corisco vem trabalhando questões de higiene, boas maneiras e virtudes com os jovens karatecas. Esses temas se tornam ainda mais imperativos em um bairro tão poluído e esquecido como está o Brás atualmente, com alguns lugares tomados pelo comércio e consumo de drogas, e muitas pessoas vivendo em situação de rua.

Não é por acaso e nem por simples regras de etiquetas que o sensei Corisco fala abertamente de temas essenciais à formação humana. É o caso da saúde. Apesar de não considerá-la o maior bem do ser humano, o professor revela uma visão abrangente ao afirmar que a saúde integra corpo, mente e alma. Assim, os jovens karatecas da São Vito escutam do sensei assuntos que, não raro, são esquecidos pelos próprios pais. Bom exemplo é o sono.

De forma contundente e sem perder o humor, o Professor pergunta a seus alunos "em que pé que anda" a batalha para ter hora de deitar e hora de levantar? A alegria transborda da garotada quando, de manhã, chegam ao dojô dizendo que venceram a luta contra o despertador, conseguindo levantar no horário que haviam estipulado.

KIMONO E UNIFORME

Questões como alimentação e vestimenta também não ficam de fora das aulas. Tendo em vista o que dizia o bispo húngaro Dom Tihamer Toth (1889-1939) - "o homem não é só alma, senão também corpo; o que se passa na alma transparece de maneira visível no corpo, e os fenômenos próprios da alma refletem-se também no exterior" -, Corisco faz questão de falar do cuidado com as roupas. Como o kimono é a veste tradicional do karatê, é a partir dele que o sensei inicia: "primeiro, aprender a vesti-lo, depois a dobrá-lo e, por fim, a lavá-lo".

Além disso, os karatecas da Escola Pináculo possuem uniformes esportivos e sociais personalizados, usados para eventos, jantares e entregas de faixa. Percebe-se que a relação desses karatecas não está restrita ao dojô; há uma preocupação com a amizade e com o convívio social.

MUITAS ARTES

Os sábados são os dias mais esperados pelos jovens karatecas do Brás. Além de muitas vezes os treinamentos contarem com os já faixas pretas Eduardo Figueiredo (Dudu) e Roberta Alencar, após a prática do karatê é a arte - agora não marcial - que habita o salão da Paróquia São Vito.

Crônicas, contos, poesias, histórias, filmes e músicas são trabalhados com as crianças, no sentido de despertar a sensibilidade, a capacidade de interpretação e a percepção da beleza.

Em um dos sábados foi promovido um "diálogo" entre os Irmãos Grimm e o cantor brasileiro Sérgio Reis. No conto "O Avô e o Neto”, dos irmãos britânicos, se relata os maus tratos que o avô de uma família sofria, com situações de desprezo e ingratidão; na música "Couro de Boi”, o cantor sertanejo brasileiro declama, de forma dolorida, um velho ditado, cada vez mais atual: "um pai trata dez filhos, mas dez filhos não 'trata' um pai”.

Estabelecendo uma relação entre a música e o conto, Corisco e um de seus alunos, Pedro Paulo, o PP, expuseram às crianças as riquezas de sentimentos que os Irmãos Grimm e Sérgio Reis transmitiram por meio de suas artes, permitindo aos jovens karatecas maior conscientização sobre o significado da família, e do respeito a todos, desde filhos até os avós. Aquela manhã terminou com o Professor cantando a música a plenos pulmões, levando a garotada ao êxtase.

PRÓXIMOS PASSOS

Educar os jovens de forma integral é o objetivo da Escola Pináculo. São as múltiplas dimensões da formação, entre as quais vontade, comunicação, inteligência e afetos, que estão presentes nos ensinamentos do Professor Corisco.

O karatê na São Vito está iniciando uma segunda etapa. Em novembro, aconteceu uma reunião com aproximadamente 40 moradores do Brás, na qual foi apresentado o trabalho da Pináculo aos pais e aos jovens do bairro. A partir deste ano, haverá mais horários para as aulas, além de palestras e orientações para assuntos como estudo, universidade, trabalho, vocação e reforço escolar. É o próprio karatê que será o "pano de fundo" para essas atividades, visto que é com a prática que se exercitam a atenção, a postura física e a atitude necessárias a tais atividades.

Vitor Alves Loscalzo

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