‘A Igreja está no mundo por causa da misericórdia’

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Entrevista com o vaticanista Andrea Tornielli
Publicado em: 04/05/2016 - 12:00
Créditos: Edição 3099 do Jornal O SÃO PAULO – página 13

A mensagem da misericórdia não é uma loucura do Papa Francisco – diz o jornalista Andrea Tornielli –, mas o motivo pelo qual a Igreja está neste mundo. Há mais de 20 anos acompanhando o dia a dia dos papas, o vaticanista do diário italiano La Stampa é um dos mais admirados entre os seus pares. No início do ano, ele lançou um livro-entrevista com o Papa Francisco, intitulado “O nome de Deus é misericórdia”, publicado no Brasil pela editora Planeta.

Na obra, Tornielli dá a palavra ao Pontífice para que explique o porquê da convocação de um ano jubilar dedicado ao tema misericórdia divina, o mais central do pontificado. “Eu gostava da ideia de uma entrevista que fizesse emergir o coração de Francisco”, explica o vaticanista no livro. “O Papa aceitou a proposta”, afirma. Em conversa exclusiva com O SÃO PAULO, em Roma, Andrea Tornielli detalha algumas de suas próprias impressões sobre essa mensagem e sobre o Papa.

O SÃO PAULO – Por que o Papa Francisco escolheu a misericórdia como tema mais central do seu pontificado?

Andrea Tornielli – Continuando na linha iniciada por seus predecessores, a partir do Papa João XXIII, Francisco considera urgente fazer conhecer esse rosto de Deus, apresentar uma Igreja que não está no mundo para condenar, mas para mostrar o rosto misericordioso de Deus. Um Deus que lhe ama assim como você é. Creio que o Papa sinta que isso é uma grande urgência para o nosso tempo.

Em quais momentos deste pontificado essa mensagem ficou mais evidente?

Creio que seja um pouco todo o pontificado. A capacidade de mostrar atenção e ternura pelas pessoas, uma grande proximidade, sobretudo com quem sofre. Talvez, principalmente nas visitas às prisões.

Mas também os outros papas visitavam prisões…

Sim, há uma continuidade, mas agora há uma acentuação particular. Francisco é o Papa da misericórdia. Essa mensagem é ainda mais central. Outros papas o faziam, mas não assim. Não é que em toda viagem o Papa visitava uma prisão. Francisco o faz. É um acento novo sobre esse aspecto, como é normal que exista.

No livro, o Papa afirma que as pessoas se afastam da Igreja quando encontram situações de “fechamento”. O que ele quer dizer com isso?

Creio que se refere a encontrar esse fechamento nas pessoas. Nesse caso, pensa, sobretudo, nos sacerdotes, quando não são capazes de acolher e de escutar. Ele dá o exemplo de um menino que morreu sem ser batizado e o padre não deixou o corpo entrar na igreja para o funeral. Acho que o Papa se refere a esse problema quando fala da importância da “pastoral do ouvido”. Isto é, de escutar. Ele a recomenda muito aos padres, mas serve para todos, porque todos podemos escutar.

O Papa diz aos padres que o confessionário não é uma sala de tortura. É uma expressão forte, não?

É sim. “Não é uma sala de tortura” significa que quem está dentro do confessionário não deve se sentir sob interrogatório. Os padres não devem ser inquisidores e, sobretudo, não devem ser curiosos sobre certas matérias. Quem vai se confessar deve ser colocado numa situação confortável. Talvez a pessoa seja um pouco desajeitada para se expressar. É nesse sentido que não deve ser uma sala de tortura. Por outro lado, o Papa diz aos penitentes que o confessionário não deve ser uma lavanderia. Não se pode ir ali como se fosse para tirar uma mancha da roupa. Se o pecado é uma ferida, é preciso curá-lo. Tem aí uma dramaticidade. Se os padres não podem transformar o confessionário numa sala de tortura, também os penitentes, aqueles que se confessam não devem pensar que se trata de levar um terno à lavanderia.

O senhor acha que esse Jubileu pode ser positivo também para o diálogo inter-religioso?

O próprio papa, na bula de proclamação do Jubileu da Misericórdia [Misericordiae Vultus], diz que o jubileu pertence à tradição hebraica, no sentido da atenção ao órfão, à viúva. Existe aí uma tradição hebraica. Mas também pelo fato que “misericordioso” é um dos títulos que o Islã atribui a Deus.

Alguns dizem que a proposta da misericórdia causa confusão, porque se perde o ponto de referência. O que o senhor acha dessa crítica?

Creio que só causa confusão, primeiro, na cabeça das pessoas que já são confusas. Segundo, na cabeça das pessoas que não têm nenhuma demanda. E, terceiro, na cabeça de padres, bispos e cardeais que não se preocupam com acompanhar as pessoas na sua vida de fé, não sentem a necessidade de ajudar as pessoas com os sacramentos, e pensam que seja seu dever manter uma certa ideia de doutrina, sem confiar no Espírito Santo ou na autoridade da Igreja. Eu estou muito impressionado [com essa crítica], porque é verdade que há um risco de se confundir a misericórdia com um “bonismo”, mas quando escuto dizer que “se fala demais de misericórdia” ou que “há misericórdia demais”, temo que sejam pessoas que não são conscientes de serem pecadores.

Por quê?

Porque quem é consciente de ser pecador não poderá jamais dizer, pensando em si mesmo, que há misericórdia demais. É a consciência de ser pobres pecadores que nos faz cristãos, que nos faz entender que precisamos da misericórdia de Jesus. Por isso, encontramos Jesus na nossa necessidade de misericórdia e no nosso pecado. Quem pensa estar sobre um pedestal, quem pensa que está fora disso porque está na posição de pregador, quem se sente separado, quem já se sente justo, quem já se sente são, quem já se sente santo, não precisa de Jesus. Jesus não poderia vir para essas pessoas. Eram os escribas e os fariseus que o estavam sempre julgando, tentando colocá-lo em dificuldade, murmurando contra ele. Quem seguia Jesus era uma multidão de publicanos e pecadores. E ele nos disse que as prostitutas e os publicanos passarão na nossa frente no Reino dos céus. Isso não foi o Papa Francisco que disse. Precisamos recordar um pouco o que está escrito nos evangelhos.

Então, qual é a grande mudança que o Ano da Misericórdia traz para a Igreja?

A frase mais bonita da Exortação Amoris Laetitia [A alegria do amor] é quando o Papa escreve que Jesus não se satisfaz com as 99 ovelhas. Vai buscar a centésima que se perdeu, porque Jesus quer todas as ovelhas. A Igreja existe para isso. Não pode ter outra preocupação que não seja esta: andar pela rua a buscar as pessoas, nas suas condições e nas suas dificuldades, anunciando o Evangelho e acompanhando-as em um caminho que pode ser longo e difícil. Mas a Igreja existe para isso. Não existe para pentear as ovelhas que já estão dentro do rebanho, que muitas vezes diminui. Não existe para defender os justos ou aqueles que se reconhecem como justos. E quando a Igreja não vai lá fora, morre. Porque se torna totalmente autorreferencial. A Igreja existe para ser missionária e para mostrar o rosto da misericórdia de Deus a quem precisa dessa misericórdia. Precisam dela, acima de tudo, os ministros da Igreja e, depois, aqueles que creem que não é mais possível mudar de vida, que estão fechados nas gaiolas que construíram para si mesmos, que afundam na lama do pecado e não pensam que haja uma mão que os salve, que os eleve, que seja possível mudar. É esse o grande anúncio da misericórdia. Não é uma “loucura” deste Papa. É o motivo pelo qual a Igreja está no mundo. Porque Jesus quer todas as ovelhas.

Felipe Domingues