Quando a esperança vence

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15/06/2016 - 15:30

Na Sagrada Escritura, encontramos muitas narrativas dos dramas humanos vividos por homens e mulheres, iluminados pela experiência de fé. São dramas familiares, como o de Caim e Abel, ou subversões sociais, como a luta pelo poder travada entre Saul e Davi. Também existem conflitos que envolveram riscos à sobrevivência, como o êxodo no tempo de Moisés, a fome no tempo de José ou a migração no tempo de Noemi e sua família. Esses são alguns dos exemplos nos quais a experiência de fé ajudou a superar a crise e restabelecer a paz, pessoal e social.

A história de Noemi é contada no Livro de Rute, que começa dizendo que houve um tempo de grande fome, e isso obrigou essa família a migrar para terras estrangeiras. Em outro país, com uma cultura diversa, também surgiram conflitos culturais e religiosos, pelo casamento dos dois filhos com mulheres pagãs. A história de Noemi se tornou ainda mais dramática quando, depois da morte do marido, morreram também os dois filhos.

Na condição de uma viúva sem descendência, Noemi despediu as duas noras e decidiu retornar ao seu país, para chorar sua amargura e morrer. Quando em meio às crises humanas parece não haver mais esperança, eis que acontece algo surpreendente. Rute, uma estrangeira e viúva de um dos filhos de Noemi, não abandonou a sogra, mas seguiu com ela e disse: “Para onde fores, irei também, onde for tua moradia, será também a minha; teu povo será o meu povo e teu Deus será o meu Deus. Onde morreres, quero morrer e ser sepultada.” (Rt 1, 16-17)

Mas o retorno de Noemi não foi propriamente uma volta “pelo caminho suave”. Chegando a Belém, ela mesma se denominou como “Mara”, isto é, a amarga. As duas mulheres passaram, então, a viver da caridade de um parente e do trabalho de Rute, que coletava os restos deixados pelos trabalhadores do campo. Os acontecimentos seguintes misturam histórias de família, promessas, dívidas de tradição e de honra, e, por fim, um casamento arranjado.

A vida dessas duas mulheres seria apenas mais uma história triste, se não fosse pela experiência de Deus envolvendo cada acontecimento, do princípio ao fim. Acontecimentos trágicos e sofrimentos são realidades pelas quais todos nós passamos, são nossas crises pessoais. A diferença está na forma como cada pessoa se coloca diante dos sofrimentos, se pelo caminho da fé ou simplesmente lamentando e murmurando pela sua própria dor.

No fim da história, Noemi recebeu nos braços Obed, o filho de Rute, e viu nessa criança o sinal da bondade divina, que lhe concedeu uma descendência. Mas a promessa de Deus aponta para uma realidade ainda maior: “Booz gerou Obed, de Rute. Obed gerou Jessé. Jessé gerou o rei Davi.” (Mt 1, 5-6), e essa genealogia segue e chega a Jesus, o Filho de Deus.

Pela sua encarnação, Jesus participou da nossa humanidade, de nossas dores e sofrimentos. Ele assumiu a condição humana a partir de um povo, e de uma realidade concreta, feita de homens e mulheres, com seus pecados e suas virtudes.

Assim, cada história humana não é apenas uma sucessão de fatos, que podem provocar dor ou alegria. Cada fato, cada passagem da nossa vida, está ligada ao acontecimento maior da nossa redenção e salvação. Em Cristo, tudo o que foi assumido, foi redimido. O que Noemi acreditou e contemplou pelos sinais, nós vimos cumprido e realizado em Jesus Cristo. Ele é a nossa esperança.

Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo auxiliar da Arquidiocese na Região Brasilândia;
e vigário episcopal para a pastoral da comunicação

Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO - edição 3106 -15 a 24 de junho