O tempo do vinho novo

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24/02/2016 - 12:45

Publicado no Jornal O SÃO PAULO - Edição 3090- 24 de fevereiro a  1º de março  de 2016

O vinho é considerado, entre aspas, um ser vivo, porque sofre mudanças desde a sua produção até o consumo final. A questão do amadurecimento ou envelhecimento dos vinhos é complexa, isso porque alguns tipos estão prontos para serem consumidos rapidamente, enquanto outros precisam de mais tempo para apurar suas qualidades naturais.

Mas é preciso ressaltar que esse processo de amadurecimento só pode ajudar a aprimorar as qualidades do vinho que veio de uma uva de boa qualidade. Um vinho ruim não pode ser melhorado só pelo tempo de armazenamento, e nem pelos recipientes em que é guardado.

Por isso, se torna tão importante a seleção das videiras. As plantas escolhidas e cultivadas de forma adequada devem produzir uvas de boa qualidade. O cultivo também exige que o agricultor, o vinhateiro, conheça bem os mistérios da cultura das vinhas. Tudo isso posto e organizado de forma adequada deve, então, resultar em boas uvas que a sua volta produziram um bom vinho, observado o tempo de sua maturação.

O processo de produção do vinho guarda uma certa semelhança com a dinâmica da nossa vida espiritual. No início do capítulo 15 do Evangelho segundo São João, encontramos a seguinte afirmativa: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor". Um pouco adiante, no versículo cinco, ainda podemos ler assim: “Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer”.

Jesus é a videira de boa qualidade, escolhida, plantada e cuidada pelo agricultor, que é o Pai. Não há dúvidas sobre a qualidade da videira e nem sobre a sabedoria e ciência do Agricultor. O que podemos é perguntar pelos frutos, pela qualidade daquilo que produzimos.

Sem dúvida, podemos afirmar que existem muitos frutos de excelente qualidade, isso pode ser confirmado pelos inúmeros santos, homens e mulheres que marcaram a história da humanidade e da Igreja, com o testemunho de suas vidas. A leitura da vida dos santos nos faz compreender o seu processo de amadurecimento espiritual. Eles ouviram a mesma palavra que ouvimos, celebraram e receberam a mesma Eucaristia, os mesmos cuidados do Agricultor e responderam na forma dos bons frutos. Para esses, o tempo consolidou suas obras.

Por outro lado, também encontramos frutos de menor qualidade. Existem pessoas que mesmo recebendo os cuidados do Agricultor, e envolvidas pela graça, continuam a espalhar palavras e gestos azedos e amargos. Para usar uma expressão do Papa Francisco, em relação aos sacerdotes, mas que também se aplica a tantas outras pessoas, podemos falar de “caras de vinagre”. Infelizmente, para essas pessoas o tempo pode não melhorar a qualidade de suas atitudes, mas pode piorar.

Porém, ao contrário do vinho que não conhece um processo de conversão, e por isso não se pode mudar o vinho que é ruim em vinho novo e bom, nós podemos nos converter. Mas isso só é possível se permanecemos ligados a Cristo. No lagar da cruz, como disse São Gaudêncio, o vinho novo, que é o sangue do Senhor, fermenta nos recipientes que são os corações dos filhos de Deus, levando à santificação. Esse é o tempo que Deus nos dá, esse é o tempo da conversão.

Dom Devair Araújo da Fonseca

Bispo Auxiliar da Arquidiocese

Vigário Episcopal da Região Brasilândia