Sentir a terra e sentir-se terra: a cumplicidade da eco espiritualidade - Pe. Gilberto Orácio

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19/08/2015 - 09:45

Quando falamos de ser humano retornamos à origem da palavra humano. O relato judaico cristão da criação do ser humano nos fala que Deus modelou o homem com argila do solo. E daí descobrimos que argila não é mais do que um pó sem consistência, que deve ser molhado para formar uma massa macia, apta a ser trabalhada. Porém, para encontrarmos argila devemos cavar, descer em nosso interior, em nosso meio uterino natural que é a terra-humus. Da raiz semântica desta palavra saíram outros ramos: hum, (h) úmido, humilde, humor, humano. Dessas palavras procedem os projetos de vida que permitem ao ser humano realizar o seu destino: o ser humano é chamado a enfrentar a sua profundidade, o seu interior (argila); crescer na convivência com os outros seres humanos sem aspereza(úmido); conservar e lutar por sua verdade, por aquilo que acredita com os pés no chão sendo realista (humildade); e avançar na vida com disposição e graça (humor) (Ana Roy, Tu me deste um corpo, 2000, p. 63 – 64). Daí que podemos pensar que o ser humano não só deve preservar a terra por hobby, mas, por ser ele parte da terra. Devemos sentir a terra, mas ao mesmo tempo sentirmo-nos terra. E por isso, cuidar de tudo o que procede de nossa raiz existencial comum. A espiritualidade ecológica procede da experiência com a espiritualidade de Jesus que se traduz em cuidado com o ser humano e com o todo criado. É como Jesus nos diz: Deus cuida de tudo (Cf. Mt. 6, 25ss).

Jesus como missionário itinerante, movimentou-se por inúmeros lugares e diversificadas paisagens. Suas pregações possuem fortes vinculações com a natureza. Ela é uma das principais fontes para a sua inspiração profética. Jesus demonstra nos evangelhos que possui uma grande capacidade de observação e de inclusão na sua fala do ambiente vital no qual se encontra. É dessa realidade que ele consegue extrair as suas parábolas, experiência privilegiada para concentrar a atenção e despertar nova consciência em seus expectadores. Deus é apresentado com o Pai cuidador da vida de seus filhos e filhas e proporciona todos os recursos necessários para a vida de cada qual, desde os pássaros do céu, passando pelos animais do campo chegando às plantas, aparentemente insignificantes (Cf. Mt. 6, 25 – 30). Dessa forma, Jesus convida quem o escuta a observar os lírios do campo, cuja existência é tão breve, e os pássaros do céu, que, aos olhos humanos, têm pouco valor por existirem em grande quantidade. No entanto, em ambos os casos, Deus provê as necessidades deles. Nessa rede inter-relacional, os seres humanos podem ter um lugar especial, mas isso não pode torná-los prepotentes e arrogantes, ignorando o cuidado que Deus tem e pede que tenhamos por todos os elementos em aparência mais insignificantes da sua realidade criada, da qual também fazem parte.        

Em nossa tradição de fé cristã o ser humano está intimamente ligado à natureza. Somos terra como já vimos acima. Todas as dimensões da sociedade estão entrelaçadas com a dimensão ecológica. Uma depende da outra. Todas estão dependentes do modo como o ser humano administra a criação. Tudo está interligado. Nada é independente, de modo que formamos uma cadeia de relações e de dependências.

O Papa Francisco tem essa noção de interdependência quando nos escreve na Encíclica “Laudato Si”: “O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. São Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade ‘provêm da intenção do primeiro agente’, o Qual quis que ‘o que falta a cada coisa, para representar a bondade divina, seja suprido pelas outras’, pois sua bondade ‘não pode ser convenientemente representada por uma só criatura. ’ Por isso, precisamos individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações. Assim, compreende-se melhor a importância e o significado de qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus. Tal é o ensinamento do Catecismo: ‘A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espetáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras.’”(nº86).

A experiência eco espiritual, uma experiência de fé que nos leva a nos sentir terra, sustenta a esperança de que apesar de todas as ameaças e previsões catastróficas que a máquina de agressão da espécie humana montou e utiliza, podemos ter um futuro bom e benfazejo. Essa esperança procede da confiança no Espírito de Deus – a Ruah transformadora - que sempre suscita pessoas e expressões de renovação sobre a face da terra. Porém, essa movimentação não é magica. Precisa de organização e de tomadas de atitudes concretas.

Eco espiritualmente, o amor nos leva a nos identificar cada dia mais com a terra de onde procedemos. Isso porque o amor é a grande força que integra e une o universo. Durante muito tempo pensamos sobre a terra. O ser humano era o sujeito do pensamento e a terra, seu objeto de pesquisa e de exploração. Quando tomamos consciência de que a terra e a humanidade formamos uma só realidade, é importante a partir de agora, pensarmos como terra, termos sentimentos como terra, amarmos como terra. Como isso é possível? Utilizando-nos de nosso princípio húmus para alcançarmos a humildade, a tolerância, a compaixão, a hospitalidade e o respeito a tudo o que nos rodeia.

Nós não nos encontramos apenas sobre a terra. Somos a própria terra, como vimos no início do texto. Num determinado momento da criação das coisas começamos a existir pelo sopro da vida, a sentir, a pensar, a amar, a cuidar... Por isso que nossa origem é do húmus. E o amor é a única possibilidade capaz de nos reiniciar nessa identificação com a terra.    

Pe. Gilberto Orácio de Aguiar - Doutor em Antropologia e Mestre em Ciências da Religião