D. Luciano em entrevista especial ao IHU On-Line, em outubro de 2005

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D. Luciano falou, em 2005, da sua trajetória de vida e da sua visão da realidade brasileira ao IHU On-Line
Publicado em: 07/08/2015 - 19:15
Créditos: IHU On-Line

D. Luciano narra a sua vida em entrevista especial no dia 8-10-2005

As notícias diárias do dia 8-10-2005, publicaram uma entrevista especial com Dom Luciano Mendes de Almeida. A entrevista foi concedida à IHU On-Line num intervalo de um retiro espiritual que D. Luciano orientava no Centro de Espiritualidade Cristo Rei - CECREI, em são Leopoldo, RS. Agendada com antecedência, D. Luciano se dispôs a falar da sua trajetória de vida e da sua visão da realidade brasileira.

Reproduzimos a íntegra da entrevista:

IHU On-Line - Como caracterizaria Dom Luciano Mendes de Almeida? Quais foram os momentos mais felizes de sua vida?

Luciano Mendes de Almeida - Minha vida toda é muito feliz. Uma das coisas que Deus me faz compreender é o valor da história e da consciência. O processo do Plano Divino de Salvação se faz em todos os momentos, tudo tem uma carga axiológica, um valor especial. Claro que há momentos de mais intensidade, tanto nas alegrias quanto nas tristezas, eu diria na vivência profunda da história. Poderia sublinhar alguns momentos felizes.

O primeiro é o contato com o sofrimento humano, perceber que a história é muito marcada por aspectos positivos e também negativos. Penetrar nesse sofrimento, comungar com esse sofrimento, partilhar esse sofrimento, creio que isso proporciona uma carga existencial muito grande.

Trabalhei cinco anos na prisão, na Itália, depois com as populações mais pobres na periferia de São Paulo, hoje com os ambientes rurais pobres de Mariana. Eu creio que isso dinamiza muito a própria vida numa fase de experiência e comunhão existencial.

Outros momentos: eu tive oportunidade de passar por todos os países da América Central, nos anos de 1980, a serviço do CELAM, entrei em contato com a Guatemala, El Salvador, a Nicarágua, Honduras, o Panamá, mais tarde também com Cuba, e tudo isso me despertou muito a consciência da América Latina. É a situação de populações sofridas, esmagadas, incompreendidas, empobrecidas que também desperta uma grande vontade de trabalhar e ajudar. São populações, às vezes, indígenas e, às vezes, que passaram pela tristeza da escravidão. Poder comungar com essas realidades é um aspecto que me ensinou a perceber que Deus não tira as dificuldades, mas ajuda a superá-las. Não se deve pedir um milagre porque o milagre é uma exceção dentro da normalidade da vida humana, mas pedir força para enfrentar essas situações, justamente em comunhão com as outras realidades em que tantos se encontram e são muito mais árduas do que aquela que uma pessoa isoladamente pode enfrentar.

Uma alegria maior, quase pontualizada, é a alegria de ver a recuperação de certas pessoas, seja da dependência química, da dependência de drogas, seja de um processo de conversão pessoal. Isso dá muita alegria para quem tem a missão de querer ajudar os outros a reencontrar a paz interior.

Essas são alegrias pontuais e um pouco desconhecidas, a alegria de ser um pequeno instrumento da paz de Deus.

IHU On-Line - Quais os momentos mais dramáticos que o senhor viveu?

Luciano Mendes de Almeida - Em primeiro lugar, os funerais de Dom Oscar Romero, em El Salvador. Eu fui um dos três bispos presentes e vi a explosão da bomba, o tiroteio contra a população, as mortes na praça, vivendo um momento de grande dramaticidade, ajudando no enterro de Oscar Romero dentro da igreja, horas, e horas, e horas, junto com aquele povo que é tão sofrido.

Em segundo lugar, foi a guerrilha e a situação de conflito no Líbano, onde estive em contato com doze grupos religiosos diferentes em 1987. Era um momento de grande aflição para o Líbano, e ali, falando com os sunitas, com os xiitas, com os armênios, com os caldeus, fiquei muito impressionado com o sofrimento daquele povo, que buscava de novo a sua harmonia, o seu diálogo depois de tantos momentos de aflição.

Em terceiro lugar, me marcaram muito as injustiças com problemas de terra aqui no Brasil, especialmente o assassinato de padre Josimo, de padre João Bosco Burnier, de Ezequiel Ramim e a prisão dos padres Aristides e Francisco Goriou. Tudo isso eu acompanhei de perto e me marcaram muito a coragem desses irmãos na fé e a dureza das situações que tiveram de enfrentar e a conseqüência que esses fatos tiveram sobre a minha vida.

IHU On-Line - Quem são as principais pessoas que marcaram sua vida? Aquelas que lhe servem de inspiração?

Luciano Mendes de Almeida - Quem mais me impressionou em todas as situações de existência foi o cardeal Francisco Xavier Van Thuan, que ficou nove anos na prisão incomunicável, no Vietnã. Eu tive a oportunidade de tratar com ele várias vezes, foi a pessoa que mais bem me fez na vida e considero uma grande graça tê-lo conhecido.

IHU On-Line - Qual é sua percepção da conjuntura política atual?

Luciano Mendes de Almeida - A escolha de um governo liderado por um expoente dos sindicatos populares assinalou também uma grande resposta a um anseio popular de ascender a níveis de direção do País. É necessário, no entanto, perceber que essa conquista não foi acompanhada na formação dos quadros necessários para a implantação das reformas, especialmente as mais urgentes como a redistribuição da terra, e o acesso de mais pessoas a uma ocupação, a um emprego, a um trabalho na terra, com boa assessoria científica e garantia de produção. Notamos que o despreparo, a falta de um apoio bem qualificado para levar adiante essa expectativa de um governo com a liderança popular reafirmou que não era ainda o momento para esse grande desenvolvimento que o País deve ter.

IHU On-Line - Os acordos feitos levaram a uma perda de identidade do governo?

Luciano Mendes de Almeida - A articulação de partidos e os conchavos e acordos feitos levaram a uma perda de identidade do programa anunciado pelo governo. É verdade que houve alguns avanços na ordem econômica, mas não houve a tão desejada redistribuição das oportunidades e incremento das reformas políticas necessárias. Infelizmente, essa situação atual manifesta que há corrupção privada e pública. Ela lesou, prejudicou, e ainda continua prejudicando, a vida política do País. Não é um fato novo. Infelizmente, sabemos que, no passado, as mesmas situações aconteciam, no entanto havia uma esperança de que o governo fosse rigorosamente ético e, além das necessidades e dificuldades previsíveis, saberia manter esse padrão ético. O fato de o País vir a conhecer esses desmandos que se expressaram na corrupção tirou uma grande alegria e a esperança de uma boa parte da população. É preciso, primeiro, averiguar com mais exatidão as responsabilidades, uma vez que muitas notícias foram vinculadas sem a devida constatação, sem o direito de defesa e com graves conseqüências, não só para a pessoa, mas também para os seus familiares. Uma vez constatada a responsabilidade é claro que se requer a correção das faltas, a punição dos responsáveis e a busca de outras formas de atuação para não reincidirmos nas mesmas falhas.

IHU On-Line - Que outras formas de atuação poderiam evitar excessos dos governantes?

Luciano Mendes de Almeida - Por exemplo, que os orçamentos de municípios, estados e união sejam acompanhados por uma fiscalização com representação popular. É preciso que o País não fique fechado numa busca quase que doentia de responsáveis porque sabemos que o mal é como um vírus que entrou em todos os níveis e classes sociais e que precisa, não só, de uma averiguação das responsabilidades maiores, mas de uma espécie de cura coletiva na reorganização dos valores. Isso significa que, enquanto os valores forem voltados para a ambição de riquezas, acumulação doentia de recursos e, portanto, uma gravíssima desigualdade social, não haverá uma solução para uma nova ordem em que cada um tenha acesso a condições dignas de vida. Assim, além do estabelecimento das responsabilidades e das medidas que a isso se segue cabe uma reeducação popular para uma nova ordem. Uma ordem correta de valores em que, prioritariamente, se encontre não a busca do ter individualista ou de vantagens pessoas e grupais, mas a prioridade de valores.

É necessário que procuremos, com urgência, em curto prazo, a maior atuação dos cidadãos no progresso e no desenvolvimento do País, que reencontremos a participação popular e a democracia participativa. Como primeira iniciativa, creio que deveríamos incrementar as Assembléias Legislativas municipais com a presença de mais participantes da sociedade local para estabelecer o orçamento, depois as leis de diretrizes, os programas imediatos e as garantias de acompanhamento desses programas.

Quando o cidadão deixar de ser expectador para ser também executor, nós teremos uma nova fase na caminhada da democracia nacional. Se bem que, para o governo ser indispensável, é necessário descobrir formas novas para que haja uma co-responsabilidade e, digamos, um enriquecimento, um aperfeiçoamento de todas as medidas que são necessárias para a promoção do bem comum.

IHU On-Line - Trata-se de mudanças na forma de viver a democracia?

Luciano Mendes de Almeida - A democracia deve se abrir para uma valorização das pessoas e superar aquela fase em que tudo se espera do governo e, quando o governo não responde, há um vazio nas expectativas. Somente depois passa para uma colaboração dos cidadãos nas diversas áreas de saúde, educação, saneamento, segurança, que são não só um direito de todos, mas também um dever de todos.

IHU On-Line - É sabido que muitos cristãos ajudaram a fundar o PT, alguns, inclusive, ocupando altos cargos no governo. Haveria algum tipo de autocrítica da Igreja em relação a seu acompanhamento na formação dos cristãos para a política?

Luciano Mendes de Almeida - É uma resposta difícil de dar, porque não tenho um conhecimento exato de quanto, em cada lugar, a Igreja acompanhou os seus líderes.

Posso, sim, recordar que houve um empenho muito grande da Igreja, mas não houve uma receptividade daqueles que estão no governo. Várias vezes houve tentativas de aproximação, de diálogo, mas houve um distanciamento muito sério da parte daqueles que estavam e estão dirigindo o governo. O motivo eu não sei, mas era um momento de grande expectativa para uma convergência de propostas, e isso não aconteceu.

Portanto, creio que não devemos incriminar a Igreja por não ter colaborado, mas também questionarmos o governo por que não colaborou com a Igreja e com várias entidades populares. Pelo contrário, fica a impressão de que houve o seguimento de certas normas da economia internacional sem haver a criatividade e a urgência de um planejamento de políticas públicas para o beneficio do povo.

Em relação ao PT, nunca houve na história do Brasil tanto apoio. Tanto que, às vezes, até confundiam Igreja Católica e PT, o que eu acho que não foi correto. Atualmente, posso dizer que nunca houve tanta participação, tanta vontade, tanta expectativa frustrada.

IHU On-Line - Como o senhor, que tem uma vida tão ativa, no País e na Igreja, se sente diante dessa situação?

Luciano Mendes de Almeida - Creio que nós temos que ser muito simples e objetivos. A situação de um país com mais de 180 milhões de habitantes, é complexa. Nós herdamos falhas estruturais muito grandes. não podemos esquecer que até o fim do século XIX, nós tivemos a triste realidade da escravidão, uma diferença social muito grande, uma desorganização no acesso à cultura, aos bens necessários. Tudo isso é um passado muito forte e que faz com que o Brasil seja um país de difícil condução pública, mas eu creio que tem havido também conquistas e, no momento, é importante investir no povo, porque, afinal, é a nossa grande reserva moral. Basta ver as famílias, as pessoas simples, por exemplo, onde eu moro. São pessoas corretas, que trabalham, têm expectativas de uma melhoria das condições de vida.

Eu não perco a esperança, acho que ninguém deve perder a esperança, mas creio que diante da complexidade do momento atual e, digamos, diante das heranças negativas da nossa história, requer-se agora um aprimoramento do sistema de governo, da maior participação popular. Os municípios são os lugares onde o cidadão atua, e se nós tivermos assembléias legislativas ampliadas, maior participação.

Nós podemos dar um salto qualitativo. O Brasil tem mais de cinco mil municípios, é um país que pode viver a efervescência e a criatividade de suas bases na formação da sociedade e eu guardo essa expectativa. Guardo não só a esperança, mas a certeza de que são possíveis medidas mais eficazes, mas, ao mesmo tempo, creio que é necessário estabelecer essas formas de participação, abrindo realmente o Governo, não pode ser só um governo marcado por um partido. Nenhum partido está preparado para governar adequadamente este país, deve haver uma convocação das pessoas adequadas para ajudar nas várias instâncias de governo.

IHU On-Line - E a conjuntura eclesial? Quais são os maiores desafios que a Igreja deve enfrentar?

Luciano Mendes de Almeida - Percebo alguns desafios que são inevitáveis porque fazem parte da situação em que nos encontramos. Primeiro é constatar que a maior parte da Igreja Católica se encontra na América e, portanto, há um horizonte muito amplo de diálogo a ser estabelecido com as grandes populações. Creio que deve ser estabelecido o quanto antes e do melhor modo possível uma relação de maior conhecimento, de interação com as grandes populações da China e do universo muçulmano. Tanto mais que nós sabemos que o contingente muçulmano hoje é o mais numeroso de todos, passa de 19% da humanidade, assim que esse desafio é extremamente importante. A Igreja não pode ser só uma igreja ocidental, uma igreja que não consegue abrir-se a outras civilizações.

Outro desafio importantíssimo é a discordância entre as normas morais da Igreja e a prática de vida dos católicos e dos cristãos. Há uma separação entre as orientações, as luzes da revelação e do magistério da Igreja e depois a prática, a realização disso na própria vida.

Um terceiro desafio é a realidade de uma enorme desigualdade social. Há populações numerosas passando fome e miséria em nações católicas, o que significa uma discordância entre a afirmação da realidade e a vivência da solidariedade. Muitos católicos se encontram na faixa de pessoas que possuem muitos recursos materiais e que não sentem a obrigação e o dever de investir esses recursos na melhoria das condições de vida de grande parte das populações.

IHU On-Line - E como avalia a presença, a liderança do novo Papa para responder a esses desafios?

Luciano Mendes de Almeida - A avaliação sobre a atuação do Papa é muito difícil. Estou acompanhando os primeiros pronunciamentos com admiração e respeito, mas ainda não tenho todos os elementos para uma ponderação que possa ajudar outros nesse momento. Conheço pessoalmente o novo Papa porque tive a oportunidade de vários contatos no passado, tenho por ele uma grande admiração, sei que é uma pessoa que está preparada para entrar nessas problemáticas, mas compreendo também a grande dificuldade sobre pronunciamentos rápidos sobre uma realidade que perdura. Certamente a ação do Espírito Santo há de iluminá-lo para diminuir essa distância entre fé e vida e, sobretudo, também entre o estilo de vida de muitos católicos diante do desafio da pobreza.