O cristão perante a vida e a morte

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25/10/2016 - 18:00

Vamos nos aproximando do feriado de Finados, que, para a Igreja Católica, é a “Comemoração de todos os Fiéis Defuntos”. Os cemitérios se enchem de visitantes e a recordação dos falecidos mexe com uma porção de sentimentos e questões que nem sempre conseguimos responder de maneira satisfatória, ou até nem gostaríamos de enfrentar.

Difícil ficarmos indiferentes diante da morte. O cemitério e a visita ao túmulo dos falecidos nos faz levantar questionamentos sobre o mistério de nossa existência: como viemos a existir? Para que vivemos? Por que morrer? Por que alguns morrem tão cedo? Também nós vamos morrer? A morte assinala o fim de tudo, ou há esperança de algo mais, além da morte? Tem valor a oração pelos falecidos? O que a morte dos outros nos ensina?

O feriado de Finados é uma boa ocasião para nos confrontarmos com essas e outras perguntas. A fé cristã e o ensinamento da Igreja Católica nos falam sobre a maneira cristã de entender o ser humano, sua vida, a morte, o mundo, o presente, o futuro... E o Catecismo da Igreja Católica traz as iluminadoras explicações da Igreja sobre sua profissão de fé: creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra; creio em Jesus Cristo que... se fez homem...morreu...ressuscitou dos mortos; creio na ressurreição da carne e na vida eterna... Tudo solidamente embasado na revelação divina e na Palavra de Deus transmitida a nós na Sagrada Escritura.

Tratamos bem as pessoas, cuidamos bem do corpo, assistimos ao doente e ao agonizante, porque cada pessoa humana é imagem e semelhança de Deus, mesmo quando isso fica pouco perceptível; honramos os corpos dos falecidos, porque, mesmo mortos, continuam a lembrar que somos “templo do Deus vivo” e que “o Espírito Santo habita em nós”; e cremos que também o corpo será ressuscitado para participar da glória dos filhos de Deus na “nova criação”. Cuidar bem dos doentes e sepultar com dignidade os mortos são obras de misericórdia recomendadas pela Igreja.

Rezamos pelos falecidos e os recomendamos à misericórdia de Deus, porque cremos no Deus da vida, para quem “todos vivem”; quem crê em Cristo, “ainda que esteja morto, viverá”, porque Ele é “a ressurreição e a vida” e não deixará no abandono da morte quem a Ele se confia pela fé. E a Igreja, pela oração de sufrágio, entrega os falecidos ao Redentor, que veio “para que todos tenham vida em abundância”.

Não fazemos culto aos mortos, nem celebramos a Missa “em homenagem aos falecidos”, mas apenas para a adoração e o louvor de Deus. Nem sempre se entende bem isso. Celebrar “em sufrágio” dos falecidos, quer dizer, em favor deles, intercedendo diante do Deus da vida em favor deles. Para cada um, o tempo das escolhas e de acolher os caminhos de Deus são os dias desta vida e quem faleceu já não pode fazer nada em seu próprio favor. Mas a Igreja continua a oferecer a caridade de sua oração pelos falecidos e os recomenda à misericórdia de Deus, pelos méritos da Paixão de Cristo. Também isso é uma obra de misericórdia de grande valor.

Quando vamos ao cemitério e vemos os túmulos, lembramos que a terra recebe de volta o que ela nos entregou para esta vida; mas os corpos sepultados também lembram sementes depositadas na terra, à espera de manifestarem a vida nova que já carregavam em si.... A morte, para os cristãos, não é o fim de tudo. A Igreja, na sua linguagem litúrgica, usa os conceitos de “repouso” e de “sono” para falar da morte: os mortos descansam das fadigas desta vida e dormem o sono da morte, à espera de serem acordados um dia e de ressuscitarem – de se levantarem de novo – para a vida plena na glória de Deus. A morte faz parte da lei da vida e da nossa condição de seres deste mundo: participamos da fragilidade e da precariedade de todas as criaturas deste mundo: do pó viemos e ao pó haveremos de retornar.

Se a morte é um mistério e nos assusta, não devemos esquecer que a própria vida também é um mistério, que só se ilumina à luz da fé no Deus vivo. Ele não nos fez sair do nada, para nascermos, com o objetivo de nos fazer voltar ao mesmo nada, frustrando o mais forte de todos os sonhos: a vontade de viver. Deus é “amigo da vida”, que não se compraz na morte e na destruição de suas criaturas, mas a todas quer fazer participar da plenitude da vida.

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Arcebispo metropolitano de São Paulo

 

Publicado no Jornal O SÃO PAULO - edição 3125 - de 26 de outubro  a 1 de novembro de 2016