Ziza Fernandes: “É difícil imaginar a Igreja sem música”

A A
Intérprete e compositora, Ziza também é musicoterapeuta e mosaicista e em 2015 completa 25 anos dedicados à música católica
Publicado em: 05/08/2015 - 09:45
Créditos: Jornal O SÃO PAULO - Edição 3063

Por Rafael Alberto

Ziza Fernandes completa, em 2015, 25 anos dedicados à música católica. Intérprete e compositora, Ziza também é musicoterapeuta e mosaicista. “Eu sirvo ao belo, de todas as maneiras possíveis”, diz. Para celebrar os 25 anos de carreira, Ziza grava no próximo dia 31 de agosto, no Theatro Municipal de São Paulo, seu primeiro DVD, do show “Segredos”. Os ingressos estão à venda no site do Theatro (www.compreingressos.com).

Você está há 25 anos na música católica brasileira. Qual a situação atual deste mercado?

Nomear a música católica brasileira de mercado já é um avanço que exige maturidade e uma visão de longo alcance pra ser bem vivido, bem visto e bem administrado. É difícil ter essa visão amplificada com precisão e senso de justiça, porque um mercado pode ser visto sob diversos focos, diversos aspectos. Eu acredito que, sim, é um mercado em expansão do ponto de vista da pluralidade artística, do ponto de vista específico das expressões culturais, porque é um mercado onde a gente pode observar diversos estilos musicais cada vez mais se desenvolvendo, cada vez mais tendo espaço para essa expressão e esse espaço sendo respeitado, assimilado, digerido pelo público e fazendo com que realmente o seu sentido aconteça, que é portar o evangelho através da sua expressão artística. Acho que o mercado tem muito pra evoluir, tem muito pra se desenvolver e melhorar, e temos que manter esse espírito missionário de uma vivência missionária de levar o evangelho através da arte, mas nós não fomos formados profissionalmente-mercadologicamente falando, não fomos formados como marqueteiros da fé, não fomos formados como pessoas que se preocupam muito mais com a venda do produto do que o conteúdo e graças a Deus que é assim, porque de alguma forma, o que é essencial, pontual e estruturante se mantém, mas principalmente, por causa da urgência da comunicação e da velocidade das mídias, da velocidade da internet e de todo esse mundo digital, desse universo visual e auditivo digital, a gente precisa se atualizar constantemente e naturalmente isso faz com que a gente se atualize, comercialmente falando também, porque a gente vai aprendendo a observar o que é comercial, o que é assimilável pras pessoas, então eu acredito que... a avaliação que eu faço é que somos ainda imaturos, temos muito o que louvar, muito o que agradecer por termos chegado até aqui dessa maneira, dessa forma, com tantas redes televisivas religiosas, com tantas rádios como meio de comunicação muito forte, então eu acredito que temos muito a melhorar, em especial o refinamento artístico, em todos os sentidos: musical, visual, harmônico-musical especificamente, mas temos muito o que agradecer também

Em aspectos comerciais, a música católica está bem estruturada? O que falta?

Não, eu não acho que já está bem estruturada, não. Acho que falta uma formação específica, especialmente para produtores musicais, pra produtores artísticos, organização de eventos, agências e empresas especializadas que cuidem com retidão de princípios, com princípios cristãos explícitos. Um mercado que pode ser regido com honestidade, que pode ser regido com crescimento justo, com muita clareza, muita transparência. Acho que tem muito, muito a evoluir e talvez os artistas precisem também entender cada vez mais que não constroem nada sozinhos, precisam de ajuda, precisam ser amparados, precisam ser formados e bem estruturados intelectualmente, espiritualmente, tecnicamente. Eu acho que isso ajudaria muito em todos os outros aspectos comerciais porque faria com que o artista amadurecesse muito e, digamos, ficasse menos impulsivo, menos amador e menos caseiro. Então, acho que nesses aspectos comerciais tem muito ainda a melhorar, uma linguagem, também, que pode ser mais amadurecida, uma linguagem que pode ser mais culta, mais refinada, de mais alto nível. A gente tem muito a melhorar, muito a melhorar. Acho que fomos nos estruturando à medida da sobrevivência, à medida da urgência e não do planejamento prévio. A partir do princípio que a gente tem uma visão de mais longo alcance e um planejamento prévio da vida, da vida missionária, da vida artística, da vida profissional do artista, tudo vai ficar muito diferente.

A música católica tem contribuído para a missão da Igreja? O que falta por parte dos músicos? E da própria Igreja? Os padres têm alguma responsabilidade nessa questão, por exemplo?

É muito difícil imaginar a igreja sem música. É como um corpo sem coração, é como uma vida sem alma, porque a música anima a vida interior do seu povo, do povo da igreja. A música facilita o diálogo com Deus, a música facilita o conhecimento de si mesmo e do outro, a música facilita e promove uma socialização e ao mesmo tempo uma comunhão profunda, não só humana, mas espiritual de todo o povo da igreja, de todo o povo de Deus. Então eu acho que sim, a música católica tem contribuído profundamente pra missão da igreja nos seus diversos aspectos e expressões, tão diferentes, tão enculturados, aspectos que às vezes um ou outro reclama que podia ser melhor, que podia evoluir, que está aos poucos evoluindo mas... não, não, acho que a nossa igreja não seria a mesma sem os baluartes que ela teve como um Padre Zezinho, Padre Irala, como a Irmã Miria, e hoje um Padre Fábio de Melo, um Padre Jonas e tantos outros compositores tão significativos do nosso meio e que compõem e dão voz pra alma humana, pra alma do povo como um todo. Acho que o que falta talvez, por parte dos músicos é profissionalização e estudo, uma subida de nível, uma possibilidade de expressão musical mais profissional, não no sentido comercial, mas no sentido de responsabilidade artística, no sentido de responsabilidade de sentido de vida vocacional mesmo, como em épocas um pouco atrás aqui da história, como os músicos que eram mantidos pelos mecenas nas igrejas e nas paróquias, eles eram contratados pelas igrejas pra manter a qualidade da igreja. Hoje a gente não tem muito essa realidade mais. A música católica é mantida por voluntários, por gente que trabalha o dia inteiro e ensaia às 10 horas da noite, pra cantar na missa às 6 da manhã. Então é uma arte que se sustenta por generosidade pura. Então, o que falta talvez seja por parte da liderança da igreja, de muitas paróquias do Brasil, ter uma consciência mais ousada talvez, ou dar um passo um pouco mais ousado financeiramente falando, pra começar um processo de profissionalização de músicos dentro das paróquias, não pensar em profissionalização de músicos que gravem discos e sejam de gravadores e de editoras, de músicos contratados da igreja, mantidos pelo padre, com a sua carteirinha assinada, mas que sejam responsáveis pela qualidade musical daquela paróquia, como é importante a secretária da paróquia é importante o músico da paróquia que ajude a todos os outros voluntários. Talvez isso possa melhorar muito por parte da igreja, por parte dos padres. Eu compreendo que a realidade financeira, dependendo de dízimo e também da força voluntária e generosa do povo, não é nada fácil administrar isso para poder investir na arte. A cultura do nosso país de terceiro mundo talvez não comporte isso ainda, mas é um sonho que eu tenho de ver isso acontecendo mais e mais. Talvez isso só vá acontecer se, nos seminários, a formação artística e a consciência artística musical dos seminaristas, futuros sacerdotes, venha a ser mais estruturada, mais bem elaborada, pra que eles cheguem às paróquias já com uma consciência bem mais profunda.

Você é, além de cantora e compositora, uma estudiosa de música. Como a música pode ajudar na formação integral da pessoa humana?

Eu acredito que uma alma humana sem musicalidade, sem movimento interior musicalmente falando é como uma alma engessada, uma alma sem vida. Eu acho que a música dá possibilidade de expressão do interior da alma humana onde essa própria alma humana às vezes não tem nem condição de ter consciência de si mesma e nem dá nomes aos seus estados. A arte existe pra isso, pra que o ser humano tenha a possibilidade de se expressar mesmo se no vocabulário dele ele não encontre palavras capazes de alcançarem ou de abarcarem aquele estado interior. Quando, por exemplo, eu escuto a 7ª Sinfonia de Bruckner, é uma força de expressão tão grande, é uma capacidade harmônica maravilhosa, uma sucessão de temas únicos. Quando eu ouço aquela sinfonia eu penso que não existe no vocabulário inglês, italiano, francês, português, não existe uma tradução em um vocabulário que eu conheça que expresse o que aquela sinfonia diz, e muitas vezes quando eu preciso rezar, quando eu preciso estar no mais fundo da minha alma, no lugar mais lúcido, mais consciente de mim, só aquela sinfonia me leva para aquele lugar. Ela é uma música instrumental, uma música clássica de um cara extremamente católico, extremamente cristão e ela, às vezes, tem uma função terapêutica, uma função organizadora, uma função curativa, uma função educadora da minha alma que eu não encontro em lugar nenhum. Então, sim, eu acredito que a música ajuda nessa formação integral, em especial nessa estruturação do ser humano, essa ajuda. É uma ajuda adequada. Digamos que o Espírito sopra por onde quer e da forma que ele quer, e quando ele sopra através da música é mais fácil de entender, é mais fácil de acompanhar, mais fácil de assimilar, então eu acredito, sim, que a música pode ajudar nessa formação integral, atingindo aspectos e níveis diferentes do ser humano: instintivos, emocionais, sentimentais, cognitivos, volitivos e espirituais.

Você diz ser uma servidora do belo, e transita em outras artes (compõe, pinta, faz mosaicos). Pelo belo, o homem pode ter contato com o divino?

Pela minha fé, pela minha concepção de vida, pela moldura através da qual eu vejo a vida eu acredito profundamente que o belo é uma face do divino, que ele não é só um veículo através do divino. Ele é um reflexo, ele é uma parte, ele é uma porção, então eu acredito sim que quando nós somos visitados pela beleza, beleza é a casa onde Deus brilha, quando eu contemplo a beleza eu já estou na casa de Deus, eu já estou diante do olhar de Deus, diante dEle, então, o que é belo, profundamente, é um toque delicado das mãos de Deus. Para aqueles que não têm essa concepção de fé, eu acho que esse espanto diante da beleza, essa experiência de ordem, de ajuste, esse exato momento de espanto diante da beleza é uma visita do Espírito e talvez essas pessoas não tenham - e talvez nem nunca vão ter, essa nomenclatura em si, que é uma experiência divina, uma experiência com Deus, mas nessa hora é maravilhoso, quando Deus se retira com elegância e respeita o silêncio ou a limitação de cada um, então eu acho que Ele não se preocupa com isso, eu acho que Ele segue nos apresentando e nos oferecendo beleza, nos oferecendo sua face divina através das belezas que nos visita. Sim, eu acho que forte e intensamente o homem tem um contato com o divino através do belo.

Você tem CDs internacionais. Cantar música católica aqui e lá fora é a mesma coisa?

De maneira nenhuma, não! A cultura brasileira é muito diferente da cultura chilena, da cultura argentina, mexicana, americana, italiana, francesa, africana, portuguesa, espanhola. Todos esses países onde eu já pude cantar eu pude experimentar públicos completamente diferentes porque eles escutam a música religiosa com a postura e com a enculturação da experiência deles de igreja, do país deles, da história deles, da referência e talvez da reverência que eles têm com o divino, com a presença, com a memória, a lembrança de Deus. É muito diferente, o brasileiro é muito festivo. Fora do Brasil, um show religioso em alguns aspectos tão fortes pra nós aqui, por exemplo, você vai num show católico brasileiro está todo mundo em pé, na quadra, na festa, pulando, batendo palma. Você vai pra Argentina cantar, é aqui, é nosso vizinho, todo mundo sentado na sua cadeirinha, é muito diferente. Eu confesso que eu já me senti muito mais exigida intelectualmente e espiritualmente falando, teologicamente falando, fora do Brasil do que no Brasil. Eu acredito que as minhas experiências internacionais me modificaram muito a postura, na forma de cantar, na forma de escrever, no que dizer, em como me posicionar, em como me expressar, e eu acho que me amadureceu muito, me ampliou muitos horizontes, me fez muito diferente. Eu louvo a Deus por essa oportunidade, por ter me aberto tantos horizontes e ter me feito entender que nem tudo o que a gente acha que é bom no nosso terreno é bom no terreno do outro, e que a experiência de fazer-me um com todos, onde estou, é sempre um super desafio artístico, intelectual, mas principalmente espiritual. É muito bíblico, então, sim, é muito diferente e muito intenso e, confesso, mais exigente.

Suas músicas não falam explicitamente de temas bíblicos e nem são propriamente de louvor. Mas todas falam sobre valores humanos. Essa opção é consciente? Fale sobre isso.

Completamente consciente. Eu não me declaro uma compositora tendenciosa e enraizada em algum movimento da igreja, mas me considero uma compositora que tem sede de expressões reais, profundas e curativas pra alma humana. Eu gosto de observar o ser humano, dar nome aos movimentos da alma do ser humano. Acho que essa percepção é movida pelo Espírito Santo com certeza porque, sem o Espírito, eu acho que eu não conseguiria transformar esses movimentos em poesia, mas acho que é uma vocação, acho que eu sou chamada desde que eu sou muito nova a isso. Desde o meu primeiro disco, eu me lembro que eu recebi até críticas sobre ele porque muitas pessoas acharam que ele era um disco “umbigocêntrico”, egoísta, só falava de mim. Com o tempo as pessoas foram entendendo que é uma vocação, é uma forma de falar com Deus e é necessário que num quebra-cabeça montado por tantos, tantas expressões diferentes da música religiosa brasileira eu sou só uma pecinha, só uma, que se completa com os demais. Eu gosto de assumir essa peça, porque eu sei que ela me pertence, ela é minha e ninguém pode exercer essa vocação e viver esse sentido de vida artística no meu lugar. É uma responsabilidade pessoal, única, individual e que me enche de sentido, é desafiadora, e me alegra muito quando eu consigo acertar a mão e fazer realmente algo que inspire valores tão evidentes e tão fortes. Eu gosto muito que Deus tenha me escolhido justamente pra fazer isso da minha vida, me alegro muito com isso. Eu me completo com os meus irmãos, com outros que têm uma linguagem de adoração, uma linguagem de louvor, uma linguagem mais social, uma linguagem mais crítica, e eu tenho essa linguagem humana, que eu adoro.