‘Igreja precisa mover-se, sem medo do novo’, diz Dom Cláudio

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Em entrevista exclusiva para o jornal O SÃO PAULO, o Cardeal Hummes falou sobre seus 40 anos de ordenação episcopal, celebrados dia 25
Publicado em: 30/05/2015 - 08:00
Créditos: Jornal O SÃO PAULO - Edição 3053

Por Rafael Alberto

Aos 80 anos, o Cardeal Cláudio Hummes celebrou, na segunda-feira, 25, seus 40 anos de ordenação episcopal. Nomeado bispo pelo Papa Paulo VI, em 1975, Dom Cláudio foi arcebispo de São Paulo entre 1998 e 2006. Depois tornou-se prefeito da Congregação para o Clero. Hoje emérito, o Cardeal segue como presidente de uma comissão da CNBB responsável pela Igreja na região da Amazônia. Nesta entrevista exclusiva, ele recorda a trajetória de seu episcopado.

O SÃO PAULO – 40 anos como bispo. O senhor pode fazer um retrato do seu episcopado?

Cardeal Cláudio Hummes - Não me sinto muito à vontade para fazer este retrato, pois é longo e complexo. Digo apenas que hoje me sinto feliz e grato a Deus por ter-me chamado, confiado em mim, apesar de tantos limites meus. Nunca pedi para presidir ou coordenar tal ou tal serviço eclesial. Sempre acolhi o que a comunidade, por meio de seus responsáveis, me pediu, enxergando nisso o chamado de Deus. Assim, sei que foi Deus quem me conduziu e me deu o encorajamento constante e as forças para ir em frente, apesar das dificuldades e o tamanho da estrada a percorrer. O Espírito de Deus me iluminou e fortaleceu. Tive, assim, a graça de experimentar tantas vezes como Deus ama seu povo, como me ama e me amou primeiro. A Ele hoje eu canto, com São Francisco de Assis: “Louvado sejas, meu Senhor!” Na verdade, sei que estou escrevendo o último parágrafo de minha vida. Se ele será breve, médio ou longo, não sei. Só peço a Deus que “enquanto perdurarem meus dias”, Ele continue a meu lado me ampare e me dê serenidade.
 
O senhor testemunhou momentos históricos diferentes no Brasil: Ditadura, redemocratização... Poderia nos falar sobre isso?

Quando, como bispo recém-ordenado, cheguei à Diocese de Santo André (SP), em junho de 1975, estávamos ainda sob a ditadura militar. Já havia sentido seu peso antes, quando, entre 1969-72, fui diretor da Faculdade de Filosofia de Viamão (RS), onde estudava grande parte dos seminaristas gaúchos. Ali houve prisões de alguns de nossos estudantes, acusados de “subversão” política! Fui chamado ao DOPS de Porto Alegre para prestar explicações. Por fim, conseguimos libertar os seminaristas. Mais tarde, um seminarista, Bolzan, que trabalhava na secretaria da nossa Faculdade, foi morto a tiros no centro de Porto Alegre. Alegou-se que fora vítima de tiros cruzados! Chegando a Santo André, não foi nenhuma surpresa dar de cara de novo com a repressão da ditadura contra os que ela chamava de “subversivos”, com a característica de serem principalmente operários (as). A Diocese de Santo André se estende sobre todo o Grande ABC (Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra). Era, então, o coração da indústria moderna do Brasil, com concentração enorme de multinacionais, especialmente montadoras de automóveis, entre as quais se destacava a Volkswagen com mais de 40 mil funcionários! Em toda a Diocese, na época, havia cerca de 250 mil metalúrgicos e muitas outras categorias de trabalhadores. Tudo estava sempre fortemente vigiado pela ditadura, pois ali havia enormes forças de resistência esperando o momento de levantar a cabeça. Ouvi, então, muitas histórias de torturas e mortes de pessoas que tinham sido presas. O levante dos metalúrgicos do ABC paulista começou a crescer a partir das greves parciais de 1977 e 78 e depois as gerais de todo ABC em 1979, 80, 81 e assim por diante até a redemocratização, conduzidas por novas lideranças sindicais, que depois se transformaram em lideranças políticas. Os trabalhadores tinham a convicção que tudo, por fim, deveria passar pela política. Foi nesse longo e sofrido período da redemocratização que  fui bispo de Santo André, por 21 anos. A Igreja no ABC foi iluminada por Deus para não se omitir nesse processo. Entramos na ambiguidade das situações diárias, para apoiar “as reivindicações justas e os métodos pacíficos”, ao mesmo tempo que consolar os feridos, curar suas feridas, renovar-lhes a esperança e evangelizar a grande sociedade, com “a opção preferencial pelos pobres”. As CEBs se multiplicaram, chegando a mais de 500 na Diocese. As pastorais sociais floresceram. O Cursilho de Cristandade fazia um bom trabalho. Após a redemocratização, veio a Renovação Carismática Católica, muito discutida na época e por muitos rejeitada. Como levar em frente um rebanho agora mais diversificado e já num outro momento histórico? Meu tempo do ABC foi tudo isso e algo mais.

O que o senhor pode nos falar sobre sua relação com os papas?

Um bispo deve ter uma relação muito forte com cada papa e muito próxima. Não foi diferente comigo. Paulo VI – hoje beato – me nomeou bispo. Não cheguei a encontrá-lo pessoalmente, já que logo depois ele veio a falecer. Sempre o admirei pela capacidade, lucidez e energia com que levou a feliz término o Concílio Vaticano II, iniciado por São João XXIII (Este, sim, conheci de perto e encontrei no Vaticano, numa audiência, com grande emoção, quando eu era ainda padre e fazia doutoramento em Filosofia, em Roma). João Paulo I, que teve poucos dias de pontificado, o conheci antes de ele ser papa, quando veio visitar algumas irmãs na Diocese de Santo André. São João Paulo II, em seu longo pontificado, eu o encontrei muitíssimas vezes, sobretudo nas “Visita ad limina” e nos Sínodos. Era o Papa das multidões! Das viagens! No primeiro encontro com ele, em 1979, quando as greves do ABC estavam fervendo e na Polônia fervia o Solidarnosc, falamos longamente sobre o papel da Igreja em tais movimentos. Ele apoiou muito o Solidarnosc e no Brasil – em especial no ABC – a Igreja apoiava o movimento dos trabalhadores. Bento XVI me chamou a Roma para ser Prefeito da Congregação para o Clero, num tempo que se tornou cada vez mais difícil, culminando com a renúncia do Papa. Para mim, foi muito enriquecedora a experiência. Como a Igreja estava sofrida na época!

Com Francisco, o senhor foi decisivo na escolha do nome...

Sim; ele mesmo contou esta história, dias após sua eleição, num encontro com jornalistas do mundo inteiro. Assim, o fato se espalhou. Foi tal qual ele contou. De fato, num impulso interior, eu disse ao seu ouvido (eu estava sentado ao lado dele): “Não te esqueças dos pobres”. Somos amigos, como ele mesmo declarou. Tenho uma imensa estima por ele. Admiro-o profundamente. Novo Papa, novo tempo. O povo de Deus voltou a sorrir, a levantar a cabeça e ter esperança segura de que este papa fará a necessária reforma da Igreja, tornando-a integralmente missionária, “em saída”, para as periferias, misericordiosa, que não condena, mas encoraja a sair das malhas do pecado e a confiar na misericórdia sem limites de Jesus Cristo e, por fim, uma Igreja pobre e para os pobres, uma Igreja que vai para curar as multidões feridas, excluídas, esquecidas, descartadas, desempregadas, desesperançadas.
 
Como o senhor vê os desafios na evangelização hoje?

O primeiro desafio é deixar-se interpelar pelo Papa Francisco e decidir-se a caminhar, não para trás, mas para frente, como ele diz. A Igreja precisa mover-se, sem medo do novo. Depois, vêm os desafios que o Papa Francisco nos propõe na Evangelii Gaudium: uma Igreja missionária, misericordiosa, pobre e para os pobres, “em saída”, que derruba muros e faz pontes para chegar a todos, com a alegria do Evangelho. Jesus Cristo deve sempre ser uma boa notícia, a notícia do amor misericordioso e ilimitado com que Deus ama o seu povo e ama a cada um de nós.

O senhor é presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB. Como é o trabalho da Igreja lá?

 Trabalhar na Amazônia foi um enorme presente de Deus nesta última etapa de minha vida. Além do mais, sentir o apoio explícito do Papa, quando ele veio para a Jornada Mundial dos Jovens e em tantos outros momentos foi um consolo e estímulo a mais. Junto com os demais bispos da Comissão Episcopal para a Amazônia, procura-se sensibilizar as dioceses do restante do País a participar – com envio de missionários (as) e meios materiais – da missão amazônica. Ao mesmo tempo, procuro visitar as dioceses/prelazias, seus bispos, povo, comunidades, na Amazônia Legal. Isso é muito importante, porque me faz conviver com eles, ouvi-los, apoiá-los. Já visitei 25, mas faltam outras tantas. E agora, foi criada a REPAM, a Rede Eclesial Pan-amazônica, da qual também me fizeram presidente neste período inicial de sua concretização. A Rede congloba as dioceses/prelazias/vicariatos apostólicos dos nove países sul-americanos que têm parte da região amazônica. Trata-se de uma rede em que queremos somar forças neste momento crítico para a Amazônia, para evangelizá-la, preservá-la, dar um desenvolvimento sustentável e uma evangelização inculturada, sobretudo para sua população originária, os indígenas, e também todo o grande restante da população local. Sobre isto, poderia falar longamente, mas aqui não há espaço.