‘Em vez de condenações, é preciso começar com proximidade, escuta e acompanhamento’

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O SÃO PAULO participou da conversa com o novo cardeal português, bispo de Fátima, sobre a diocese, sua nomeação e questões da Igreja.
Publicado em: 25/07/2018 - 14:30
Créditos: Redação

Cinco minutos antes de entrar para a missa de Pentecostes, na Catedral da diocese portuguesa de Leiria-Fátima, o bispo Dom António Marto descobriu que o Papa Francisco o havia nomeado cardeal. De uma hora para outra, o bispo da famosa cidade dos três pastorinhos que viram Nossa Senhora virou um colaborador direto do Sumo Pontífice em sua missão de pastoreio universal da Igreja Católica.  

“Recebi a notícia com surpresa e emoção, sem saber o que fazer”, afirmou, em uma conversa com jornalistas na Sala de Imprensa da Santa Sé, no Vaticano, em 28 de junho. “Percebi como um serviço pedido pelo Papa. Uma missão a mais”, disse. “Eu apoio a reforma que o Papa Francisco quer levar à Igreja: mais voltada ao Evangelho, menos burocrática. Mais acolhedora, menos exclusiva. Mais atenta aos pobres e mais construtora de pontes.”

Neste projeto de Igreja, explica Dom António, “em vez de começar com condenações, é preciso começar com proximidade, escuta e acompanhamento das pessoas”.

No dia 29 de junho, ele e outros 13 foram criados cardeais pelo Papa Francisco. O SÃO PAULO participou da conversa com o novo cardeal português e editou, a seguir, as principais respostas às perguntas dos jornalistas.

 

O SÃO PAULO: NAS CELEBRAÇÕES DO CENTENÁRIO DE FÁTIMA, NO ANO PASSADO, E O SENHOR TEVE GRANDE PROXIMIDADE COM O PAPA. FOI ISSO QUE O INCENTIVOU EM SUA ESCOLHA?

Sim, o centenário das aparições me ofereceu a oportunidade de ter duas audiências privadas com o Santo Padre, para preparar a sua peregrinação a Fátima e falar dos pontos mais fortes do seu pontificado, especialmente a partir da exortação apostólica Evangelii Gaudium – A Alegria do Evangelho. Houve uma sintonia muito profunda entre o bispo de Leiria-Fátima e o Papa. Há um processo de reforma da Igreja que o Papa leva adiante, de ter uma Igreja ainda mais fundada no Evangelho, mais misericordiosa, mais próxima das pessoas. Em vez de começar com condenações, é preciso começar com proximidade, escuta e acompanhamento das pessoas. É uma Igreja em saída, que vai ao encontro de todos e procura construir pontes de diálogo com todos os povos, em um momento em que a humanidade é muito fragmentada, muito dividida e muito polarizada. Nesse sentido, o Papa desenvolve um papel único, neste momento da história.

 

O SÃO PAULO: A SUA NOMEAÇÃO É UM RECONHECIMENTO DO PAPA SOBRE A IMPORTÂNCIA DA MENSAGEM DE FÁTIMA PARA TODA A IGREJA?

O Papa esteve em Fátima e, na minha visão, ele entendeu, intuiu [o que Fátima significa]. Ele não havia feito um estudo especial sobre a mensagem de Fátima, como fez o Papa Bento XVI, mas percebeu a profundidade e o valor daquilo que se vive naquela Igreja. Ele entendeu a projeção universal da mensagem de Fátima, seja para a Igreja – porque no início era uma mensagem sobre a Igreja perseguida em um ambiente hostil, o que ainda existe em várias partes do mundo –, seja também para a humanidade ameaçada pela autodestruição, pelas duas guerras mundiais. E, hoje, é ameaçada por uma chamada “terceira guerra mundial em pedaços”.

Penso que a celebração do centenário e a peregrinação do Papa foram motivo para a minha nomeação cardinalícia. Claro que a nomeação é algo pessoal, um ato de fé do Papa em uma pessoa, um bispo, um seu colaborador. Mas as coisas vão juntas. Na carta que ele mandou aos neocardeais, ele disse que a nomeação representa a universalidade da Igreja e também uma ligação mais estreita entre a Sé de Pedro, isto é, o Papa, e a igreja particular, neste caso a Diocese de Leiria-Fátima. Acho que isso é um dom do Papa a Fátima.

 

RTP: QUE CONTRIBUTO A SUA NOMEAÇÃO VAI LEVAR À IGREJA PORTUGUESA?

O cardeal é um colaborador próximo do Papa e faz aquilo que o Papa lhe pede. Sobretudo é uma missão para a Igreja universal. O Papa pede a colaboração para o governo da Igreja universal. Mas sou o bispo de uma diocese. Minha contribuição será na conferência episcopal, com os outros bispos. Como cardeal, não creio que haja nada de específico.

Faço parte de uma conferência episcopal, que tem uma presidência, e cada bispo tem a sua voz. Junto com eles vamos realizar um trabalho sinodal. É algo que fazemos juntos. Não quero agora virar “o senhor” da conferência. Eu apoio a reforma que o Papa quer levar à Igreja: mais voltada ao Evangelho, menos burocrática. Mais acolhedora, menos exclusiva, no sentido da exclusão. Mais atenta aos pobres e mais construtora de pontes.

Uma Igreja empenhada na construção da paz, sobretudo agora com o problema dos refugiados e dos migrantes, que é uma catástrofe humanitária, eu diria quase sem precedentes, quando há condições para resolver esse assunto.

 

CORREIO DA MANHÃ: A SUA NOMEAÇÃO CRIA O PRECEDENTE DE FÁTIMA SEMPRE TER UM CARDEAL? O SENHOR CONSIDERA TER DE DEIXAR A DIOCESE?

Não está nada dito. Depende de cada Papa. O Papa Francisco tem os seus critérios de escolha dos seus colaboradores mais próximos como cardeais. Os que vierem depois podem ter outros critérios. Isso não institui uma tradição. Sobre deixar a diocese, não penso que esteja no horizonte. Nada me foi dito e não recebi nenhum sinal nesse sentido. Os outros cardeais permanecem em sua diocese e eu também. Até porque penso que o cardinalato seja uma aprovação do trabalho que tenho desenvolvido em Fátima.

 

SIC: A HISTÓRIA DA IGREJA FOI MARCADA POR VÁRIOS MOMENTOS DE TENSÃO INTERNA. POR INFLUÊNCIA MIDIÁTICA, ESSA TENSÃO HOJE É MAIS EXPOSTA. COMO O SENHOR INTERPRETA O MOMENTO ATUAL?

Sempre houve na Igreja várias tensões, sobretudo no fim de cada Concílio. Havia aqueles que resistiam às novidades. No Vaticano I, havia os cismáticos, no Vaticano II houve uma resistência que o Papa Paulo VI conseguiu conter, mas que depois provocou um cisma, com os Lefebvrianos. Agora, esta novidade que o Papa Francisco traz também encontra resistências. Mas a maioria do povo católico está com o Papa Francisco. Temos de ser adultos em saber conviver com essa tensão, que às vezes pode ser profícua, no sentido que nos estimula, uns aos outros, a ver aspectos que estavam subvalorizados. Há também aqueles que caminham mais lentamente, e não são capazes de entender algumas mudanças.

 

EWTN: PORTUGAL TEM UMA MAIORIA CATÓLICA DE MAIS DE 80% DA POPULAÇÃO. MAS UMA MÍNIMA PARTE PARTICIPA DA VIDA DA IGREJA. QUANTO É DRAMÁTICA ESSA SITUAÇÃO?

Portugal é um país de maioria católica, do ponto de vista sociológico. De acordo com as pesquisas, 85% das pessoas, mais ou menos, se dizem católicas. Aqueles que participam da missa dominical são cerca de 20-22%, como média geral do país. Há dioceses em que são 5% a 7% e outras em que 50% participam. Portugal pertence à Europa e, hoje, nenhum país é uma ilha. Vivemos a globalização e há outro fenômeno, a migração. Portugal é um país muito procurado pelos turistas, porque há paz, não há terrorismo, há uma boa gastronomia, não é muito caro. Mas tudo isso recai também sobre a população.

Antes, era a Igreja quem fazia o ministério da Palavra. Hoje, são as televisões, as redes sociais que ocupam esse espaço. Por isso, são necessários novos métodos de evangelização e transmissão da fé, sobretudo para as novas gerações. Nossos crismandos nascem e crescem em um mundo completamente novo, diferente daquele dos mais idosos, como eu, septuagenário. Eu vi a televisão pela primeira vez quando tinha 15 anos! Uma partida de futebol: Benfica e Manchester. Não tinha computador, celular, redes sociais.

A cultura digital não é só questão de técnica, de saber trabalhar como novos instrumentos. São novas relações com as coisas, entre as pessoas, um novo modo de ver o mundo. Há também uma cultura líquida, do provisório, do zapping. A pessoa está sempre querendo mudar e procurando algo de novo. O panorama do Ocidente é o panorama de Portugal. Mas não podemos ficar parados diante de um muro de lamentações. Esse momento é um desafio e uma oportunidade. Como diz o Papa Francisco, vivemos não só uma época de mudanças, mas uma mudança de época. A Igreja já superou tantas. Temos que encará-la com confiança.