Dia Mundial Dos Pobres

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InstItuída pelo Papa FrancIsco, a data marca o compromIsso concreto das comunIdades cristãs em todo o mundo de refletIr sobre a pobreza e buscar formas de superá-la
Publicado em: 17/11/2017 - 13:00
Créditos: Redação

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Era domingo. Uma a uma, as meninas saíam do banheiro com a roupa da missa. Ao todo, na casa, eram oito meninas, tímidas e risonhas. Depois, começaram a aparecer os meninos. Eram quatro. Mais ligeiros, os pequenos corriam de um lado para outro enquanto esperavam que elas se aprontassem. “Cuidado para não se sujarem”, repetia a mãe, Maria da Silva dos Santos, que mora na cidade de Jenipapo de Minas, na região mais pobre do Estado de Minas Gerais. Mãe e filhos iriam a pé para a celebração, numa caminhada de mais de uma hora. 

“A casa não é minha, mas o fazendeiro, que é o dono, deixa que vivamos aqui”, disse Maria. Seu olhar, com frequência, dirigia-se a uma das filhas que, a essa altura, se sentou no único banco de madeira, no meio na sala, onde estava também a mesinha com uma televisão. Havia mais três quartos pequenos, onde meninos e meninas se dividiam. O banheiro e a cozinha ficavam fora da casa. A mãe, orgulhosa, fez questão de mostrar os azulejos do banheiro, comprados pela filha mais velha, de 17 anos, que ali colocou o que ganhou com seu trabalho no Rio de Janeiro. Ela foi trabalhar em outro estado depois da morte do pai, quando a situação da família ficou ainda mais complicada e ela se viu obrigada a deixar os estudos para trabalhar. 

Em 2015, 40,2% da população brasileira compreendida entre zero e 14 anos  estava em situação de pobreza. O percentual corresponde a mais de 17,3 milhões de jovens pobres no Brasil. O levantamento foi feito pela Fundação Abrinq. São consideradas pobres as famílias com renda de até meio salário mínimo mensal per capita, ou seja, por pessoa. 

A pobreza extrema afetará, até o final de 2017, de 2,5 milhões a 3,6 milhões de pessoas no Brasil. A estimativa foi divulgada pelo Banco Mundial em fevereiro de 2017 e aponta um aumento real do número dos que vivem em situação de miséria, ou seja, daqueles que ganham menos de R$ 70,00 por mês. 

 

Dia Mundial dos Pobres 

Em todo o mundo, há realidades de pobreza e pessoas que não têm nem o mínimo necessário para viver. E, diferentemente do que se imagina, até mesmo em países considerados desenvolvidos, como a Itália ou a Irlanda, existem pessoas que morrem de fome e não conseguem manter-se sem ajuda do governo, de instituições de caridade ou de familiares e amigos.

Para recordar a situação de pobreza no mundo e chamar todos à solidariedade, o Papa Francisco instituiu, no fim do Ano da Misericórdia, em 20 de novembro de 2016, o Dia Mundial dos Pobres, que será celebrado pela primeira vez no domingo, 19 de novembro. 

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo , no dia 8 de julho deste ano, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano de São Paulo, recordou que essa data será comemorada como um momento de tomada de consciência. “Comemorar é trazer à memória, à recordação. Gostamos de comemorar coisas boas, como aniversários e outros momentos marcantes; comemoramos pessoas ilustres, heróis nacionais e seus feitos, artistas célebres e suas obras, fatos importantes, como a abolição da escravatura ou a independência do país. Comemorar pode ser motivo de festa, mas também ocasião para a tomada de consciência, ou para a advertência, para que fatos terríveis não sejam esquecidos e não voltem a se repetir. A comemoração ajuda a formar o senso ético e a cultura”, afirmou Dom Odilo em seu artigo. 

No texto, ele recorda, também, que só em São Paulo existem mais de 20 mil pessoas em situação de rua. “Conhecemos sua real situação, seus dramas e necessidades? E os numerosíssimos pobres das periferias e dos cortiços de nossas cidades, que formam cidades invisíveis e só aparecem nas estatísticas dos problemas urbanos, mas são esquecidos e descartados pela sociedade e pelas administrações públicas!”.

Mas, quem é o pobre? Dom Odilo continua afirmando que “pobres são aqueles que não possuem a renda ordinária suficiente para o sustento digno de si mesmos e de seus dependentes; por outro critério, são pobres aqueles que carecem de alimento suficiente, moradia minimamente digna, acesso aos cuidados da saúde, à educação, oportunidades de trabalho e renda e do reconhecimento de sua dignidade. Pobres, geralmente, não classificados como tais, são também os que vivem sem esperança, afundados nos vícios, sem afeto, sem lar, sem pátria, sem motivos para viver. Os pobres, entre nós, ainda são muitos, muitíssimos!”. 

Na mensagem do Papa Francisco, que pode ser lida na íntegra no site www.arquisp.org.br, o Pontífice afirma que houve momentos em que os cristãos não escutaram profundamente o apelo de Jesus de estar no meio dos pobres, mas que, por outro lado, o Espírito Santo fez surgir ao longo da história pessoas que ofereceram a própria vida no serviço aos pobres. “Dentre todos, destaca-se o exemplo de Francisco de Assis, que foi seguido por tantos outros homens e mulheres santos, ao longo dos séculos”, recordou o Papa. 

“Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz. Essas experiências, embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida. Na verdade, a oração, o caminho do discipulado e a conversão encontram, na caridade que se torna partilha, a prova da sua autenticidade evangélica. E deste modo de viver derivam alegria e serenidade de espírito, porque se toca com as mãos a carne de Cristo. Se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia”, escreveu Francisco. 

O Pontífice procura ainda falar sobre os rostos da pobreza e como há diversos fatores associados a ela. “Conhecemos a grande dificuldade que há, no mundo contemporâneo, de poder identificar claramente a pobreza. E, todavia, esta interpela-nos todos os dias com os seus inúmeros rostos marcados pelo sofrimento, pela marginalização, pela opressão, pela violência, pelas torturas e a prisão, pela guerra, pela privação da liberdade e da dignidade, pela ignorância e pelo analfabetismo, pela emergência sanitária e pela falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e pela escravidão, pelo exílio e a miséria, pela migração forçada. A pobreza tem o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco que se é constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social, da 
miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!” 

Por fim, o Papa convida a construir uma nova visão da vida e da sociedade, em que não haja tanta desigualdade e injustiça. “Infelizmente, nos nossos dias, enquanto sobressai cada vez mais a riqueza descarada que se acumula nas mãos de poucos privilegiados, frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração ofensiva da dignidade humana, causa escândalo a extensão da pobreza a grandes setores da sociedade no mundo inteiro. Perante esse cenário, não se pode permanecer inerte e, menos ainda, resignado. À pobreza que inibe o espírito de iniciativa de tantos jovens, impedindo-os de encontrar um trabalho, à pobreza que anestesia o sentido de responsabilidade, induzindo a preferir a abdicação e a busca de favoritismos, à pobreza que envenena os poços da participação e restringe os espaços do profissionalismo, humilhando, assim, o mérito de quem trabalha e produz: a tudo isso é preciso responder com uma nova visão da vida e da sociedade”, convida o Papa, na sua mensagem.

 

A força transformadora da acolhida

Anderson nasceu numa família simples e pobre, mas além disso, cresceu vendo o pai que estava constantemente alcoolizado. E por isso ele, ainda adolescente, viu-se seguindo os mesmos passos do pai. “Comecei a beber muito cedo e, aos 12 anos, já usava maconha. Depois, comecei a usar também a cocaína. Eu pensei que não ia ter mais jeito, foi quando eu conheci a Iara. Ela foi uma grande luz na minha vida.”

O testemunho de Anderson (de sobrenome não identificado) foi publicado no dia 28 de agosto de 2017 e pode ser visto no canal do YouTube “Drogas nunca mais”, mantido pela Missão Belém, comunidade católica que acolhe pessoas em situação de rua e as acompanha num caminho de recuperação do vício de substâncias químicas. 

“Durante uma noite muito fria em São Paulo, eu estava na rua e alguém me chamou para a Missão Belém. Lá, eu vi um clima de família e, naquela noite, numa das salas, eu encontrei meu pai com um Terço nas mãos. Foi um reencontro após quatro anos. Depois daquele dia, ele e eu conseguimos mudar de vida.” Hoje, Anderson e a esposa, Iara, são voluntários na Casa Guadalupe, da Missão Belém.

Irmã Cacilda da Silva Leste, 44, fundou, ao lado de Padre Gianpietro Carraro, a Missão Belém, comunidade católica que, desde 2005, desenvolve na cidade de São Paulo um trabalho junto “aos mais pobres dos pobres”, como eles mesmos afirmam. A missão começou quando eles passaram a visitar a região da Cracolândia, que por volta do ano 2000 era bem menor do que hoje e reunia aproximadamente 20 pessoas em situação de rua. Com a experiência na rua, eles perceberam que cerca de 99% das pessoas que perambulam por São Paulo, sobretudo pelo centro da cidade, têm problemas com álcool e drogas. 

“À princípio, a gente levava um café, algo para que eles comessem. Mas, com o tempo, percebemos que isso não bastava. Começamos a passar o tempo com eles na rua. Já chegamos a ficar um mês inteiro na rua. Pedíamos como eles, comíamos com eles, dormíamos na rua e, sobretudo, anunciávamos o Evangelho, porque acreditamos que a Boa Nova transforma”, afirmou Irmã Cacilda, que mora na Favela Nelson Cruz, na região do Belém.

Irmã Cacilda já acolheu muitas pessoas “em seu barraco”, como ela mesma disse. Como o movimento começou a aumentar e não era mais possível receber as pessoas, eles abriram mais uma casa, há cerca de quatro anos. A Casa Guadalupe fica a cinco minutos do Metrô Belém e tem vaga para 150 pessoas. Aberta 24 horas, a casa recebe pessoas que não têm aonde ir, além de doentes cujas famílias não são identificadas ou não têm condições para cuidar deles. 

“Esses dias, eu encontrei aqui perto [na Região Belém] um irmão da Cracolândia. Eu já o conhecia e sabia que ele, além do vício do crack, tem algum transtorno mental. Ele estava deitado, atravessado na calçada. Eu parei e vi que as pessoas nem olhavam e passavam quase pisando sobre ele. Então, eu parei, me abaixei e disse: “Vamos para casa?”. Ele abriu o olho, levantou rapidamente, pegou seu chinelo e me acompanhou. Então, eu o trouxe para essa nossa casa. Essa é uma situação cotidiana”, contou a Religiosa. 

Hoje, a Missão Belém conta com 160 casas no Brasil, 140 em São Paulo, 15 em Belém (PA) e uma no Paraná. Além disso, a Missão mantém casas no Haiti e uma na cidade de Lamezia Terme, na Itália, onde há um intenso movimento de imigrantes. “É uma casa para 25 pessoas, de 12 países que tem oito línguas diferentes e seis religiões diferentes”, contou Padre Gianpietro, em entrevista à reportagem.

Ele disse também que, desde 2005, a comunidade acolheu 60 mil pessoas individuais. Aproximadamente 40 mil começaram uma caminhada de recuperação de drogas e álcool e, dessas, 50% conseguiram se libertar do vício. “Podemos dizer que 20 mil pessoas vivem uma vida nova porque passaram pela Missão Belém”, comemorou o Padre.

Além da Missão Belém, muitas outras congregações religiosas e comunidades católicas mantêm, diariamente, serviços de acolhida e auxílio aos pobres, além de projetos educacionais e culturais voltados para crianças, adolescentes e jovens de baixa renda. É o caso dos Frades Menores Franciscanos que, no centro de São Paulo, distribuem comida diariamente para os pobres com o projeto “Chá do Padre”; ou a Congregação das Irmãs Escolares de Nossa Senhora, que mantém projetos sociais no Jardim Elisa Maria, na periferia de São Paulo. 

 

Ações na Arquidiocese de São Paulo 

Dom Odilo escreveu aos bispos, padres, religiosos e leigos da Arquidiocese de São Paulo pedindo que, em todas as comunidades e organizações, a mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial dos Pobres seja refletida e divulgada, além da organização de alguma ação concreta. 

A Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese, com vários grupos, como a Missão Belém, a Aliança de Misericórdia, a Toca de Assis e a Fraternidade Voz dos Pobres estará na Praça da Sé desde o sábado,18, em acolhimento às pessoas em situação de rua. Acontecerá uma adoração contínua e, às 22h, a celebração da missa. No domingo, 19, haverá um café da manhã com as pessoas na rua e atendimento a elas. Às 11h, todos participarão de missa na Catedral da Sé.

Em outra ação, no sábado, 18, a partir das 14h, haverá a missão Franciscana, com visita aos moradores de rua e às ocupações da região central. A missão será realizada pelas lideranças do Convento de São Francisco e da Pastoral da Criança. 

No domingo, 19, haverá arrecadação de cestas básicas, que serão doadas às famílias atendidas pela Pastoral da Criança, e a comunidade franciscana almoçará junto às pessoas em situação de rua que são atendidas diariamente no “Chá do Padre”.