Uma vocação dedicada à esperança

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Conheça o início da vida consagrada de Dom Paulo Evaristo Arns
Publicado em: 14/12/2016 - 13:15
Créditos: Edcarlos Bispo/ Jornal O SÃO PAULO

“Aqui vivi mais de dez anos com o povo e fui feliz, diante de Deus e de meus amigos”. Assim escreve o Cardeal Paulo Evaristo Arns no livro “Um padre em sete morros abençoados”, escrito em 2005 por ocasião da celebração de seus 60 anos de ordenação presbiteral.

Em 2015, ao completar 70 anos de sua ordenação, o Cardeal Arns, arcebispo emérito de São Paulo, concelebrou missa na Catedral da Sé na manhã do domingo, 29. A missa foi presidida pelo arcebispo metropolitano, Cardeal Odilo Pedro Scherer, e contou com a presença dos bispos que colaboraram com Dom Paulo como auxiliares: Dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo emérito de Blumenau (SC); Dom Antônio Gaspar, bispo emérito de Barretos (SP); e Dom Fernando Penteado, bispo emérito de Jacarezinho (PR).

Logo no início da celebração, Dom Angélico dirigiu uma saudação ao Cardeal Arns, ressaltando que Dom Paulo foi um “cardeal do povo, com cheiro das ovelhas, fome e sede de justiça, apóstolo das periferias”.

“Queremos oferecer no altar de Deus tudo aquilo que significaram estes 70 anos de sacerdócio de Dom Paulo, muitos deles vividos na Arquidiocese de São Paulo”, manifestou Dom Odilo, recordando, ainda, que a liturgia do Advento fala da esperança, destaque do lema episcopal de Dom Paulo, “De esperança em esperança”.

Um intelectual em Sete Morros

Após voltar da França, em 1952, doutorado pela Universidade de Sorbonne, o então Frei Evaristo Paulo Arns trabalhou no interior de São Paulo, nas cidades de Bauru e Agudos, onde lecionou e cuidou da formação dos frades franciscanos no Seminário Menor. Mas foi em Petrópolis (RJ) que, além de cuidar da formação dos seminaristas, ele dedicou parte do seu tempo ao trabalho pastoral e “se apaixonou pelo povo humilde”, como afirma Maria Angela Borsoi, que por mais de 40 anos foi secretária de Dom Paulo.

Essa paixão que fica clara nas mais de 80 páginas do pequeno livro: “Um padre em sete morros abençoados”. Entre histórias e memórias, Dom Paulo conta como era o trabalho que realizava junto ao povo, desde o atendimento aos doentes, as catequeses para as crianças, a preocupação com a falta de escola e o alto índice de analfabetos da região.

“O principal era a escola: de cem crianças, 91 não a frequentavam, como já contei. As escolinhas se resumiam a uma sala e a professora sacrificada, gritando entre as crianças sentada na terra batida. Preparei um projeto de reforma das escolas e fui apresentá-lo ao bispo local, homem de muita bondade fineza. Aceitou logo a proposta, pois reconhecia os estudos e a experiência de seu frade amigo. Em que consistia? As salas de aula passariam, por um comodato, à Igreja. O município nomearia os professores e os pagaria. Mas só poderiam nomear aqueles que figurassem na lista do povo que descobre, indica e controla”.

No livro estão relatos do sacerdote que se colocava à disposição do povo e não se furtava de subir os morros de Petrópolis para dar bênção em doentes e mulheres grávidas, ou que ajudou um casal de portugueses, moradores da cidade, a adotar uma criança. “Choro. Riso. Viva a criança! Está nos ajudou soltando seus gritinhos. Quando a futura mãe envolveu o neném nos braços, tiveram de segurar o senhor Aurélio para ele não cair de emoção. Eu mesmo o imaginava trazendo o pequeno presente de Deus, agora tão semelhante a Nossa Senhora. Era uma menina”.

Em 1966, quatro meses de chuvas provocaram uma calamidade na cidade. Rochas despencaram, rolando morro abaixo e por onde passaram, deixaram um rastro de morte, lama e destruição. Ao receber uma ligação pedindo socorro, Frei Evaristo convocou os estudantes. Todos trocaram os hábitos, por calças, camisas e botas. Os feridos foram encaminhados para o hospital, já os mais de 40 mortos foram velados no salão do convento franciscano. “Fizemos escala, e os frades, após o banho, trajando seus hábitos religiosos, passaram a noite ao lado dos mortos, no salão da Ordem Terceira. Rezaram e cantaram a noite inteira para evitar a confusão do choro e a reclamação contra Deus, que não havia evitado essa quase insuportável calamidade”.

A escolha da vocação

Maria Angela destaca que ao olhar para a vida e vocação de Dom Paulo não se pode dissociá-la da vida de franciscano, ou seja, de todas as obrigações que além de ser padre, ele deveria cumprir por ser um frade franciscano.

Nesse aspecto, ela cita uma entrevista dada por Dom Paulo, em 1989, para a revista Grande Sinal, da Editora Vozes, onde Dom Paulo, na época comemorando 50 anos de vida religiosa, afirma que “foi a partir do momento que recebi como presente o texto completo do Novo Testamento. Gostei sempre da pessoa e da mensagem de Jesus Cristo, por isso afeiçoei-me com intensidade a todos acontecimentos que tanto empolgaram a São Francisco: o Natal de Jesus a vida terrena; a cruz como fonte de esperança; e a eucaristia como expressão plena de amor”.

Como escreve o Cardeal Arns em sua autobiografia: “Me perguntam com frequência jornalistas e amigos íntimos. Qualquer coisa que eu tenha feito em minha vida ou ainda chegue a realizar explica o fato de eu ser padre. Fui por longos anos professor, mas sempre padre-professor, ao ensinar Literatura, Teologia ou Didática. Escrevi livros e milhares de artigos mesmo antes da ordenação sacerdotal. Trazem a marca de padre. Amei muito na vida e passei por situações humilhantes, por calúnias graves e muito difundidas, mas sempre como padre, porque desejei cumprir a missão que Cristo me confiou. Meu lema de bispo, arcebispo e cardeal – ‘De esperança em esperança’ – foi escolhido na época eu que eu era um simples padre”.

O episcopado

O dia 2 de maio de 1966 foi de bênção e esperança para a Igreja: foi quando o Beato Paulo VI nomeou Frei Paulo Evaristo como bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo. Pouco conhecido em São Paulo até então, o jovem novo bispo viria a se tornar uma personalidade identificada com a cidade de São Paulo, não apenas pelo nome, mas pela sua vida e seu testemunho de pastor da Igreja. Seu lema episcopal – ex spe in spem (“de esperança em esperança”) - marcou seu episcopado.

O Cardeal Rossi confiou ao novo bispo auxiliar o pastoreio da região Norte (Santana) da Arquidiocese; já havia vários outros bispos auxiliares na imensa Igreja particular de São Paulo, cuja população crescia rapidamente. Com os migrantes, que chegavam sem parar à Metrópole, formavam-se bairros novos na extensa periferia, necessitando de assistência religiosa e ação evangelizadora.

Arcebispado e cardinalato

Com o chamado à Roma do Cardeal Rossi para estar à frente da Congregação para a Evangelização dos Povos, Paulo VI nomeou Dom Paulo como arcebispo metropolitano de São Paulo no dia 22 de outubro de 1970. Dom Paulo foi feito cardeal pelo mesmo Beato Paulo VI no dia 5 de março de 1973 e recebeu a igreja titular de Santo Antônio de Pádua, na Via Tuscolana, em Roma.

Dom Paulo serviu a Arquidiocese de São Paulo como arcebispo por quase 28 anos, até que renunciou ao governo pastoral em 15 de abril de 1998, por decorrência de idade. Sua dedicação à Igreja e ao povo de São Paulo foi imensa. Tratava-se de implementar as reformas do Concílio Vaticano II e de promover eficazmente a evangelização, o testemunho e a presença da Igreja na imensa Metrópole. Era necessário ampliar as estruturas e serviços eclesiais, religiosos e assistenciais nas extensas periferias pobres da cidade, traduzindo em novas práticas pastorais as decisões e ensinamentos do Concílio sobre a Igreja; e isso requeria uma renovada formação do clero, dos religiosos e leigos.

Fazia-se necessário promover a justiça social, em sintonia com a Doutrina Social da Igreja, afirmando e defendendo a dignidade da pessoa, em conformidade com a antropologia cristã e as ricas orientações do Concílio, especialmente na constituição pastoral Gaudium et Spes. A Igreja precisava empenhar-se, como fermento na massa e sal da terra, na renovação da vida social, cultural e política do país, em tempos difíceis de limitação e cerceamento das liberdades democráticas, de perseguição política e de graves violações da dignidade humana, promovida pelo Estado autoritário. E Dom Paulo empenhou-se pessoalmente, mediando a solução de conflitos e dando coragem, amparo e confiança a muitas pessoas que lutavam para que o Brasil voltasse a ser um país livre e democrático.

Publicado no Jornal O SÃO PAULO em 30 de junho de 2016

Especial Dom Paulo Evaristo Arns