Identidade e diferença: entenda o ‘sonho cultural’ do Papa para a Amazônia

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Nesta segunda análise de uma série com quatro, O SÃO PAULO apresenta chaves de leitura para a exortação apostólica Querida Amazônia
Publicado em: 04/03/2020 - 11:00
Créditos: Redação

Nesta segunda análise de uma série com quatro, O SÃO PAULO apresenta chaves de leitura para a exortação apostólica Querida Amazônia

Se a Igreja deve respeitar as culturas e tradições dos povos da Amazônia, como conseguirá pregar o Evangelho? No segundo capítulo de sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia, documento em que registra suas principais reflexões sobre o Sínodo dos Bispos para a Amazônia, o Papa Francisco começa a responder a essa questão.
Mesmo povos diferentes entre si podem desenvolver relações respeitosas. E nenhuma cultura é estática nem totalmente fechada ao encontro com outras culturas. No “sonho cultural” do Papa Francisco para a Amazônia, ele relata que a região é um verdadeiro “tesouro cultural em conexão com a natureza” (QA 36).
Somente ao preservar suas raízes culturais fortes é possível ir ao encontro dos povos da Amazônia. “A identidade e o diálogo não são inimigos”, alerta o Santo Padre. “A própria identidade cultural se arraiga e se enriquece no diálogo com os diferentes, e a autêntica preservação não é um isolamento empobrecedor” (QA 37).
A verdadeira cultura do encontro é aquela que leva o Evangelho com ternura e o testemunho de vida, preservando a mensagem de Cristo e incorporando-a a valores das mais diferentes culturas humanas.
Em Querida Amazônia, Francisco apresenta quatro sonhos para a região: o primeiro deles é social, o segundo é cultural, o terceiro é ecológico e o quarto, eclesial. Em uma série de quatro análises, O SÃO PAULO apresenta chaves de leitura para essas categorias. Na semana passada, falamos do “sonho social”. Entenda, a seguir, as observações do Papa relacionadas ao aspecto cultural.

EVITAR OS RÓTULOS
O Papa Francisco acredita no valor das culturas amazônicas. Ele entende que o Evangelho pode ser “encarnado” naquele contexto, como em qualquer outro, e por isso não é preciso “colonizar a Amazônia culturalmente”.
Para isso, uma das mensagens mais importantes é: não podemos rotular os povos amazônicos e pensar que são todos iguais.
Somente entre os povos isolados, há mais de 110 comunidades – e em 
situação de grande fragilidade. Há, porém, centenas de outros povos não isolados. E cada um dos grupos que sobreviveram à colonização têm uma identidade própria, sem falar nos povos ribeirinhos, nos migrantes e nos mestiços, por exemplo.
Ou seja, não é preciso destruir as culturas locais para implantar uma nova. É possível “cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem debilitar a identidade, promover sem invadir” (QA 28). É possível ajudar a Amazônia a preservar a “transmissão cultural de uma sabedoria que foi passando de geração em geração” (QA 30).
Diz o Papa: “Nós que observamos de fora deveríamos evitar generalizações injustas, discursos simplistas ou conclusões feitas só a partir de nossas próprias estruturas mentais e experiências” (QA 32).

VALORIZAR AS DIFERENÇAS
Qualquer projeto para a Amazônia, diz o Papa Francisco, deve incorporar a perspectiva dos povos e culturas locais. Até mesmo o que para o Ocidente é visto como “qualidade de vida” pode não ser para as comunidades tradicionais, “cujas culturas ancestrais nasceram e se desenvolveram em íntimo contato com o entorno natural” (QA 40).
Portanto, somente com raízes fortes esses povos estarão capacitados ao diálogo. “Desde nossas raízes, nos sentamos à mesa comum, lugar de conversa e de esperanças compartilhadas”, escreve o Papa. “Desse modo, a diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira, se transforma em uma ponte”, acrescenta (QA 37).

CULTURAS ABERTAS, E DE TODOS
Se, por um lado, cada cultura deve valorizar o que é seu, por outro pode estar aberta ao encontro com elementos de outras culturas, ou somente irá “perpetuar formas de vida antiquadas, rejeitando qualquer mudança e confronto sobre a verdade do homem” (QA 37).
Ainda que não seja possível interromper o processo de globalização, em que inúmeras culturas se encontram e se fundem, há um remédio para conter o atropelamento de culturas locais.
Nas palavras do Papa, esse remédio é “o sentido de corresponsabilidade diante da diversidade que embeleza nossa humanidade”. Ou seja, se compreendermos que a cultura do outro também é nossa, porque é uma riqueza produzida pela comunidade humana, seremos capazes de preservá-la, respeitá-la e, até mesmo, de aprender com ela.
“Por isso, esse interesse em cuidar dos valores culturais dos grupos indígenas deveria ser de todos, porque sua riqueza também é nossa”, alerta Francisco (QA 37).

RISCOS DA DOMINAÇÃO CULTURAL
Se esse encontro de culturas não for realizado de forma mutuamente respeitosa, a tendência é que prevaleçam elementos de uma cultura dominante. E esta é a cultura hoje difundida pelos mecanismos da economia globalizada, “que tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural” (QA 33).
Francisco chama esse fenômeno de um verdadeiro “empobrecimento humano” e alerta para alguns riscos. O consumismo, o individualismo, a discriminação, a migração forçada, a fragmentação das famílias e a desigualdade social podem se difundir de forma descontrolada, especialmente nos contextos urbanos. E todos esses são aspectos de uma cultura que se apresenta como “aparentemente mais evoluída” (QA 36).
Diferentemente, as culturas amazônicas tendem a apreciar o sentido comunitário e a conexão com a natureza.

DIÁLOGO ENTRE JOVENS E VELHOS
Para “cuidar das raízes” de cada povo, o Papa convida os jovens a entrarem em diálogo com os mais velhos, especialmente entre os indígenas. E, ao mesmo tempo, se entrarem na comunidade cristã, reconhecerem as raízes da história do povo de Israel, do qual nasceu Jesus Cristo (QA 33).
Somente com o diálogo entre gerações, jovens e velhos, é possível preservar essas raízes. “É importante deixar que os idosos contem longas histórias e que os jovens se detenham a beber desta fonte” (QA 34).
Isso pode ser feito tanto por tradição oral quanto com textos escritos, inclusive por meio da poesia. Além disso, essas expressões, entendidas por meio de símbolos e hábitos de cada povo e de cada cultura, tornam-se verdadeiros ativos, patrimônio de toda a comunidade humana.