‘Deus não deixa de chamar!’

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Encontros para refletir sobre a cultura vocacional nas comunidades e o trabalho realizado pela Igreja no despertar e acompanhamento das vocações
Publicado em: 02/08/2019 - 11:30
Créditos: Fernando Geronazzo

A Arquidiocese de São Paulo realizará, nos dias 2 e 3 de agosto, o Pré-Congresso Vocacional. O evento, que acontecerá no Colégio Madre Cabrini, na Vila Mariana, é uma preparação para o 4º Congresso Vocacional do Brasil, que será realizado em Aparecida (SP), entre 5 e 8 de setembro. Com o tema “Vocação e Discernimento”, os dois encontros têm como objetivo refletir sobre a cultura vocacional nas comunidades e o trabalho realizado pela Igreja no despertar e acompanhamento das vocações. 

Em entrevista ao O SÃO PAULO, Dom José Roberto Fortes Palau, Bispo Auxiliar de São Paulo e referencial para Pastoral Vocacional e Seminários da Arquidiocese, falou sobre os desafios da promoção vocacional nos dias de hoje e destacou que a diminuição do número de vocações não significa que elas não existem, mas que é preciso repensar a forma como o tema tem sido abordado com os jovens. O Bispo ressaltou, ainda, que o testemunho de vida dos sacerdotes e consagrados é a principal promoção vocacional. Leia a íntegra da entrevista abaixo. 

O SÃO PAULO – Qual é a motivação para que seja realizado um Congresso Vocacional no Brasil? 
Dom José Roberto Fortes Palau – Estamos vivendo uma época bem peculiar, na qual há uma redução significativa no número de vocações em todos os segmentos da Igreja. Certa vez, ouvi o questionamento de um teólogo que me chamou a atenção: “Deus deixou de chamar?” Não, Ele continua a fazê-lo. Porém, precisamos ajudar os jovens a ouvir o chamado divino e a discernir a sua vocação. É preciso que tenhamos uma abordagem que ajude as pessoas a despertar para esse chamado. Observamos isso com o aumento de vocações adultas: significa que houve um discernimento e uma resposta ao chamado, mas que foram posteriores. Portanto, as vocações existem. Só é preciso identificá-las. O objetivo do 4º Congresso Vocacional do Brasil e do nosso Pré-Congresso é justamente discutir e refletir sobre essa realidade. 

O que dificulta o despertar dessas vocações? 
Hoje, os jovens têm muitos atrativos, são solicitados de todos os lados. Se, por um lado, no passado, não havia tantas formas de comunicação, como as redes digitais, por outro lado, tudo isso acaba impedindo os jovens de prestar atenção às coisas essenciais. Essa geração tem dificuldade, por exemplo, de fazer silêncio, de ter momentos de introspecção e reflexão. Isso, naturalmente, dificulta o discernimento e a escuta do chamado de Deus. O individualismo, muito presente na sociedade atual, é preocupante e dificulta a escuta do chamado divino e a abertura do coração. 

O Papa Francisco tem sempre alertado para o que ele chama de ‘cultura do provisório’... 
Exatamente. Vivemos em uma cultura do efêmero, em que tudo é passageiro, como se houvesse um prazo de validade. E, por isso, torna-se difícil falar de consagrar toda a vida ao serviço de Deus ou mesmo ao Matrimônio, pois as pessoas têm cada vez mais dificuldade de dar a vida por algo que vá até a morte. É importante preparar os jovens para entender que em todo caminho há alegrias e dificuldades que precisam ser enfrentadas e superadas. Muitas vezes, na primeira dificuldade, a pessoa já quer desistir do caminho. Eu tive um diretor espiritual que dizia que quanto mais a árvore é agitada pelo vento, mais ela cria raízes e mais forte ela se torna. Nesse ponto, entra a espiritualidade. É nos momentos de provação que a vida espiritual sustenta o jovem a fim de superá-los. Se a vocação for apenas algo imanente, sem a dimensão transcendente, chega um momento em que a pessoa cai em um esgotamento, em um vazio, em que ela perde o sentido e, muitas vezes, abandona tudo. É preciso manter sempre a comunhão com Deus, que é aquele quem chama e envia. Vocação não é profissão.

Como cultivar essa dimensão transcendente da vocação? 
No processo de discernimento vocacional, é importante o auxílio de um bom orientador espiritual que ajude o jovem a entender a dimensão transcendente da vocação, que vai além das motivações naturais. De repente, o jovem tem o desejo de ajudar o próximo e de realizar trabalho social. Isso é bonito. Contudo, a vocação à vida consagrada ou sacerdotal vai além disso, pois é uma consagração e entrega da vida a Deus. 

Deus chama para dar a vida, para estar a serviço do próximo, como a cena do lava-pés. O ministério sacerdotal, por exemplo, é gastar-se servindo aos irmãos. No entanto, para isso, é preciso ter uma vida interior, uma mística que brota da própria comunhão com Cristo, sobretudo na Eucaristia. Do contrário, essa vocação não persevera, esse serviço vira um ativismo sem sentido sobrenatural. É importante que haja pessoas preparadas para ajudar os jovens a fazer um reto discernimento, que mostre a eles a beleza da vocação e, ao mesmo tempo, as dificuldades inerentes a ela. Jesus perguntou a Tiago e João: “Podereis beber o cálice que eu beberei?” (Mc 10,38). Essa pergunta é fundamental. Vocação é fazer de sua vida um serviço, um dom de si mesmo a Deus e ao próximo, que vale muito a pena. É importante mostrar ao jovem vocacionado que, ao abraçar a vocação, ele renuncia a muitas coisas boas por um bem maior, e a sua realização se dá nessa doação e nesse serviço ao próximo.  

Nesse sentido, compreende-se a vocação universal à santidade? 
Com certeza. Eu tive um professor de Antropologia Cristã que nos recordava a passagem bíblica: “Foi em Cristo que Deus Pai nos escolheu, já bem antes de o mundo ser criado, para que fôssemos perante a sua face sem mácula e santos pelo amor” (Ef 1,3-4). Ou seja, o ser humano foi pensado e criado para ser santo, tendo como modelo de santidade o próprio Jesus Cristo. Essa é a meta da existência humana: a santidade. E o sacerdócio e a vida religiosa, assim como as demais vocações específicas, são caminhos para a santidade. 

Por isso, a melhor promoção vocacional é o testemunho? 
Sem dúvida! Se o padre ou uma religiosa derem um testemunho bonito e feliz de sua vocação, isso certamente despertará muitos jovens para o discernimento vocacional. Eu quis ser padre porque vi a felicidade do meu pároco, um sacerdote italiano, já falecido. Seu testemunho de fé, de coerência de vida, tocou-me e despertou muitas vocações. As dioceses que tiveram sua história marcada por santos sacerdotes têm numerosas vocações. Nós temos os padres promotores vocacionais na Arquidiocese, mas todo sacerdote precisa ter consciência de que ele, na sua paróquia, é o grande responsável pelo despertar das vocações. 

Além disso, quais são os outros caminhos para uma boa Pastoral Vocacional? 
A dimensão vocacional deve estar presente em toda a vida pastoral da Igreja. Desde a Catequese, o tema das vocações deve ser abordado com as crianças e adolescentes, despertando-os para a atenção ao chamado que Deus faz para suas vidas. Trabalhos como o realizado com os coroinhas, cerimoniários e todos aqueles que servem o altar são uma grande escola de promoção vocacional, por exemplo. É importante que os padres tenham contato com esses grupos, falem sobre vocação. Tudo isso faz diferença. Hoje, vivemos em uma cultura que pouco fala do sacerdote e, quando fala, às vezes, é com uma abordagem negativa. 


A família também tem um papel importantíssimo no despertar vocacional. Infelizmente, enfrentamos a dificuldade de vocacionados provenientes de famílias fragmentadas, sem uma boa formação religiosa. Contudo, quando a dimensão vocacional é trabalhada desde a base familiar, os frutos são muitos. Mesmo assim, com esses desafios, surgem vocações, o que confirma que Deus continua chamando e nós precisamos ajudar as moças e rapazes a ouvi-lo e a discernir bem. Repito, Deus não deixa de chamar!

Luciney Martins / O SÃO PAULO