Eucaristia e sacrifício de Jesus

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18/08/2021 - 14:15

A renovação litúrgica do Concílio Vaticano II deixou de lado ou até negou a dimensão de “sacrifício” na celebração da Eucaristia? Esta questão já foi amplamente esclarecida no passado, mas foi levantada novamente em recentes considerações sobre o Motu Proprio “Traditionis custodes”, acerca do uso, em nossos dias, do Missal de São João XXIII (1962). Aqui apresento breves esclarecimentos.

Um pressuposto necessário é situar a questão na história. Após o Concílio de Trento, a renovação da teologia sobre a Eucaristia e sua celebração destacou muito na celebração eucarística as dimensões de “renovação incruenta do sacrifício de Jesus na cruz” e da “presença real” de Jesus na Eucaristia. Isso foi necessário naquela época, pois a Reforma protestante negava ou reduzia o significado desses dois aspectos importantes do Sacramento da Eucaristia. Com o passar dos tempos, porém, a teologia católica sobre a Eucaristia acabou ficando unilateral, deixando na sombra outras dimensões também importantes desse “sublime Sacramento”.

O movimento teológico que precedeu a reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II recuperou novamente alguns aspectos do Sacramento da Eucaristia, um tanto deixados de lado. À luz dos estudos bíblicos e patrísticos, e, também, da Tradição perene da Igreja, foram destacados os aspectos de banquete e ceia pascal, alimento da fé, ação de graças, “comunhão” com Cristo e com a Igreja, “vínculo de caridade”, anúncio do banquete escatológico do encontro definitivo com o Senhor e penhor da vida eterna. O Sacramento da Eucaristia é riquíssimo de dimensões e significados que não podem ser reduzidos a um ou dois apenas. A celebração da Eucaristia é também a “epifania da Igreja”, que manifesta a natureza íntima de maneira perceptível.

A renovação litúrgica do Concílio não abandonou a dimensão sacrifical da celebração da Eucaristia, nem a deixou em segundo plano. Aqui não devem ser tomadas como referência as eventuais atitudes e manifestações individuais de algum celebrante ou teólogo, mas os textos oficiais do Magistério sobre a Eucaristia e os próprios textos da celebração eucarística, especialmente das Anáforas, ou Orações Eucarísticas. O ensino do Magistério está sintetizado no Catecismo da Igreja Católica (cf. parágrafos 1322-1419). Passemos a algumas breves referências.

Nos três Prefácios da Santíssima Eucaristia a dimensão sacrifical do Sacramento aparece claramente: Jesus “instituiu o sacrifício da nova Aliança e mandou que o celebrássemos em sua memória” (Prefácio 1). “Para que a memória da Cruz salvadora permanecesse para sempre, ele se ofereceu a vós como cordeiro sem mancha e foi aceito como sacrifício de perfeito louvor” (Prefácio 2). A morte salvadora de Jesus por nós também é evocada no 3º Prefácio da Eucaristia: “Vosso Filho, obediente até a morte de cruz, nos precedeu no caminho de volta para vós, que sois o fim último de toda esperança humana”.

Em todas as Anáforas, aparece com abundância e clareza a dimensão sacrifical da Eucaristia, não apenas nas palavras da consagração. “Eles vos oferecem este sacrifício de louvor por si e por todos os seus” (Anáfora 1). “Celebrando, pois, a memória da paixão do vosso Filho (…), vos oferecemos, ó Pai, dentre os bens que nos destes, o sacrifício perfeito e santo, pão da vida eterna e cálice da salvação” (ibidem). “Celebrando, pois, a memória da morte e ressurreição do vosso Filho” (Anáfora 2). As Anáforas 3 e 4 têm o maior número de referências: “Não cessais de reunir o vosso povo para que vos ofereça, em toda parte, do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito” (Anáfora 3). “Celebrando, pois, ó Pai, a memória do vosso Filho, da sua paixão que nos salva (…) vos oferecemos em ação de graças este sacrifício de vida eterna” (ibidem). “Reconhecei o sacrifício que nos reconcilia convosco” (ibidem). “Celebrando, pois, ó Pai, a memória da nossa redenção, anunciamos a morte de Cristo” (Anáfora 4). “Nós vos oferecemos o seu corpo e sangue, sacrifício do vosso agrado” (ibidem). “Olhai o sacrifício que destes à vossa Igreja” (ibidem). “Pelos quais vos oferecemos este sacrifício” (ibidem). “Em torno deste altar, vos oferecem este sacrifício” (ibidem).

Também as demais Anáforas mencionam a dimensão sacrifical da celebração eucarística. Quando celebramos a Eucaristia, nós, que não estivemos junto da cruz de Jesus, no Calvário, fazemos o “memorial” da paixão e morte de Jesus por nós. De forma ritual e na fé da Igreja, participamos do único e eterno sacrifício da nossa redenção e recebemos dos seus frutos. Sem esquecer as outras dimensões da Eucaristia, que também fazem parte da única fé da Igreja.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 18/08/2021