Quaresma: combate contra o espírito do mal

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02/03/2017 - 00:15

Na quarta-feira de cinzas, iniciando a Quaresma, pedimos a Deus: “Que a penitência nos fortaleça no combate contra o espírito do mal”. Essa oração nos indica o sentido do tempo quaresmal, que vivemos como preparação à Páscoa.

Temos nós a necessidade de combater o “espírito do mal”? Não será essa uma linguagem mitológica, que reflete uma compreensão dualista do mundo, submetido às forças do bem e do mal, em luta constante? Não é bem assim para a fé cristã, que não se baseia na concepção dualista do mundo. Não existem duas forças ou energias em luta: a do bem e a do mal. Mas existe Deus, autor e princípio de todo bem. E existe o Maligno, inimigo de Deus e de suas criaturas, que nos quer envolver nas suas tramas malignas. Ele age e nos quer seus aliados na promoção das “obras do Maligno”.

O Maligno, porém, não é divino; ele é criatura decaída por causa de sua soberba e desobediência; é incapaz de reconhecer a soberania de Deus e de se voltar para Ele com arrependimento. Deus é o único Soberano, e o Maligno nada pode contra Ele. Mas o homem é frágil criatura e pode ser envolvido pelas tramas do Maligno, tornando-se aliado seu na promoção de toda confusão e maldade neste mundo. O homem é livre e o tentador sabe disso, procurando confundi-lo nas suas escolhas livres, propondo-lhe enganos lisonjeiros e maldosos.

Graças à misericórdia de Deus, porém, o homem não está condenado a permanecer preso nas malhas da maldade e pode se arrepender, pedir a ajuda de Deus e se libertar da influência do Maligno. Como consegue fazer isso, se “a carne é fraca” e sua inteligência e vontade se deixam confundir pelas tentações do Maligno? Deve o homem reconhecer humildemente que ele mesmo não é Deus e assumir seu lugar de criatura, reconhecendo a soberania de Deus e a bondade dos seus caminhos, indicados por meio dos mandamentos e do Evangelho de Jesus. E, então, estará seguro e feliz, do lado de Deus.

É bem isso que nos é recordado no início da Quaresma. Ao impor as cinzas sobre nossas cabeças, o celebrante nos lembra o chamado de Jesus no início de sua pregação pública: “convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15). Em outras palavras, é deixar de ser soberbos e de achar que não precisamos de Deus, que podemos resolver tudo por nós mesmos. Jesus convida a humanidade a voltar-se para Deus, que tem caminhos bons e meios seguros para vencermos o Maligno e encontrarmos a alegria plena da vida.

A outra fórmula pronunciada na imposição das cinzas é esta: “lembra-te de que és pó e ao pó hás de tornar” (cf. Gn 3,19). Parece uma advertência humilhante para o homem, mas não é: é realismo honesto, capaz de ajudar o homem a não se iludir e a fazer as escolhas certas na vida. Quem somos nós? Talvez achamos que somos eternos, senhores absolutos do bem e do mal, não devendo dar contas a ninguém de nossos atos e de nossa vida...

A Igreja nos recorda nossa real condição neste mundo: do pó viemos e ao pó retornaremos. Ao mesmo tempo, porém, ela nos recorda que Deus nos valoriza imensamente e nos ama com amor infinito: “Tanto Deus amou este mundo, que lhe entregou seu Filho único, para que não pereça todo aquele que nele crer” (Jo 3,16) Por isso, nos chama a voltarmos nosso coração e nossa mente inteiramente a Ele, nosso bem supremo.

O rito penitencial da imposição das cinzas nos convida a olharmos para nossos pecados com sincero arrependimento e a buscar o perdão de Deus. O pecado é sempre um ato de soberba em relação a Deus e de desrespeito aos seus mandamentos. É não-reconhecimento de sua soberania. No fundo, é a mesma atitude de Adão e Eva, que preferiram ouvir o tentador (“sereis como Deus”, Gn 3,5), em vez de ouvir e obedecer a Deus.

Pelo Batismo, fizemos as promessas de renunciar a Satanás, de ficar sempre do lado de Deus e de Jesus Cristo nosso Salvador; de manter firme nossa fé em Deus e de guardar seus mandamentos durante toda vida. Essa é a luta e o combate constante em nossa vida! Nem sempre somos fiéis aos nossos propósitos batismais e cristãos. Este tempo de penitência serve para avaliar e rever nosso modo de viver e para nos arrependermos de nossos pecados, buscando nossa força em Deus e em Jesus Cristo, vitorioso sobre o Maligno, o pecado e a morte.

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Arcebispo metropolitano de São Paulo

Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO ed 3140 de 2 a 9 de março de 2017