Igreja viva, após 1.700 anos!

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15/05/2019 - 10:30

Na Catedral de Tréveris (Trier), na Renânia, Alemanha, venera-se a relíquia do Manto Sagrado de Jesus Cristo, seguindo uma tradição que remonta ao quarto século do Cristianismo. Trata-se da túnica de Jesus, “sem costura, feita de uma peça só, de alto a baixo” (Jo 19,23-24), que os soldados romanos, durante a crucificação de Jesus, não quiseram rasgar para dividir entre eles, mas lançaram a sorte para ver quem ficaria com ela.

No início da era cristã, Trier era um posto avançado das tropas romanas no centro norte da Europa, à beira do rio Mosela, na atual fronteira da Alemanha com a França e Luxemburgo. Trier, chamada Augusta Treverorum pelos romanos, chegou a ser uma cidade importante do império entre os povos germânicos conquistados. Nela nasceu o imperador Constantino, que, no início do século IV, mediante o Édito de Milão, deu a liberdade religiosa aos cristãos em todo o império, pondo fim a uma cruel perseguição contra os discípulos de Cristo, com numerosíssimos mártires. Trier goza hoje do reconhecimento como cidade mais antiga da Alemanha.

Do ponto de vista religioso, Trier também desempenhou um papel relevante na Antiguidade, tendo sido a primeira sede episcopal ao norte dos Alpes, já no início dos anos 300 da era cristã. Também os primeiros cristãos de lá foram perseguidos e martirizados pelo Império Romano. Em Trier viveu durante algum tempo o bispo Santo Atanásio, exilado de Alexandria na época das controvérsias arianas. Também viveu em Trier Santo Ambrósio, que se tornaria o célebre bispo de Milão; também Santo Agostinho passou por Trier, como ele próprio testemunha nas “Confissões”, relatando o itinerário de sua conversão à fé cristã. A monumental Catedral de Tréveris testemunha uma história de 1.700 anos de perseverança na fé e na vida cristã!

O Manto Sagrado teria sido levado de Jerusalém para Trier no início dos anos 300 d.C., por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Para ser preservada dos saques e roubos, a urna com a preciosa relíquia passou por vários lugares próximos, até que foi murada debaixo do altar principal da catedral, onde permaneceu por vários séculos. A tradição de sua veneração nunca desapareceu e foi fortalecida no século XVI, quando o imperador Maximiliano quis vê- -la e venerá-la. Daí por diante, ela passou a ser mostrada aos peregrinos, de tempos em tempos, como ainda acontece atualmente.

Nos primeiros dias deste ano, a Diocese de Tréveris celebrou as “jornadas do Manto Sagrado” no contexto do encerramento de um sínodo diocesano. Uma vasta programação previa celebrações na catedral para os mais variados grupos eclesiais e sociais. Numerosos eventos artísticos, culturais e sociais também faziam parte do programa das jornadas. Para a ocasião, tive o convite do bispo, Dom Stephan Ackermann, para participar do dia do clero diocesano e partilhar reflexões sobre a Igreja no Brasil, especialmente as experiências do sínodo arquidiocesano de São Paulo.

Pode-se questionar a autenticidade da relíquia do Manto Sagrado venerado em Trier. Embora existam razões plausíveis para presumir tal reconhecimento a essa relíquia, sabemos bem que a nossa fé cristã não depende da autenticidade comprovada das relíquias ligadas a Cristo e aos Santos, veneradas com devoção em muitos lugares. O fato é que a túnica sem costura de Cristo, mencionada no Evangelho de São João, possui variados simbolismos, que nos levam ao coração da mensagem do Evangelho. Ela fala da “inteireza” do amor de Cristo pela humanidade, que se doou inteiramente por nós e nos quis abrigar a todos debaixo do manto de sua misericórdia. Que os soldados pagãos tenham reconhecido que era uma peça preciosa, não querendo dividi-la, sugere que também os pagãos e os distantes de Deus têm a possibilidade de reconhecer a preciosidade do amor do Filho de Deus por eles. A túnica “não dividida” entre os soldados sugere a comunhão da Igreja, que não deve ser dividida, por vontade do próprio Cristo. Na visita à relíquia, na Catedral de Trier, faz-se a oração pela Igreja, pedindo que a ação do Espírito de Deus “reúna de novo o que está dividido”. É uma referência às divisões na Igreja.

O Manto Sagrado, mais que tudo, continua a ser um sinal e um testemunho, que atraem para Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador e Senhor da Igreja, a quem nossos olhares precisam se voltar sempre de novo, sobretudo em tempos de crise, quando tudo parece ficar obscuro e desorientado. Nosso sínodo arquidiocesano aponta para isso, mediante o proposto “caminho de comunhão, conversão e renovação missionária”.

 

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 15/05/2019