Ainda há esperança

A A
09/05/2020 - 12:00

Há quase quatro meses, com a pandemia de covid-19, o mundo mergulhou numa crise sanitária sem precedentes há mais de um século, desde a “gripe espanhola”. Mesmo as sociedades mais avançadas na ciência e na técnica estão penando para lidar com o minúsculo vírus. O número de contagiados e de óbitos cresce a cada dia, deixando muitos em pânico diante da difícil escolha entre a renúncia ao ritmo ordinário da vida e o risco de fazer parte da multidão de vítimas.

Os atingidos pela pandemia merecem todo o nosso respeito e solidariedade. E se até aqui fomos poupados pela minúscula e assustadora criaturinha e ainda gozamos de boa saúde, demos graças a Deus!

Sem diminuir o drama de tantos, minha reflexão é um convite à esperança, cujos sinais aparecem mesmo em meio a tanta angústia e tanto sofrimento.

Vejo médicos, enfermeiros e servidores nos hospitais que, com dedicação heroica, põem em risco a própria saúde para salvar a vida dos doentes. Mesmo assim, muitas vezes devem assistir, impotentes e sem mais recursos, à perda de vidas preciosas. Não menos admiração merece a legião de cuidadores anônimos dos enfermos nas casas e em locais de acolhida, mesmo improvisados, fazendo o possível e o impossível para confortar e dar ânimo a quem foi golpeado pela covid-19. Quantos “anjos bons” estão empenhados em pequenas iniciativas de amor às pessoas do grupo de risco, como os idosos, dispondo-se voluntariamente a assisti-los e prestar-lhes serviços necessários!

Quantos grupos pequenos e anônimos, ONGs, igrejas, organizações sociais e assistenciais, famílias e indivíduos movimentam um volume incalculável de recursos de todo tipo para aliviar o sofrimento de doentes e socorrer os desassistidos! Há também quem reduza e até perdoe o valor do aluguel a receber, para ajudar quem perdeu sua fonte de renda e não tem como pagar. Quantos outros renunciaram espontaneamente ao nível de seus ganhos para evitar a morte da empresa ou organização empregadora!

E não faltam profissionais e pessoas de boa vontade que se dispõem a confortar e dar assistência psicológica a quem soçobrou sob a carga insuportável. Padres e religiosos continuam a assistir os doentes em hospitais e nas casas, mesmo correndo o risco do contágio. E muitas pessoas saem da indiferença e começam a se importar com a angústia do próximo.

Vejo governantes de vários países, personalidades do mundo dos negócios, da finança e do espetáculo unindo esforços para apoiar, financiar e incentivar a pesquisa, a ciência e a técnica na busca de uma vacina e de medicamentos eficazes para vencer a pandemia. E há um movimento em curso para que os benefícios da pesquisa sejam estendidos igualmente a todos os povos. Intelectuais, artistas, personalidades do mundo da cultura e do espetáculo, de expressão internacional, manifestaram-se a favor dos povos indígenas e de sua proteção contra a doença e a miséria. Mais de 60 bispos católicos, que vivem e trabalham com as populações da Amazônia brasileira, fizeram um forte apelo às autoridades governamentais brasileiras para que os povos da Amazônia, há muito necessitados de maior atenção, recebam, finalmente, o socorro necessário diante das ameaças à sua sobrevivência nos espaços de sua cultura.

Há iniciativas em âmbito mundial para promover o perdão da dívida externa de países pobres, para que possam cuidar melhor da vida de suas populações. E não é mais tabu falar em revisão das orientações da economia mundial, para fomentar novos padrões de vida e convivência, com prioridade para as necessidades básicas da população e oportunidades de vida digna para todos, em lugar do incentivo à acumulação e ao consumo do supérfluo e da cultura do descarte.

O vírus nos obriga a reconhecer que somos todos parte da mesma família humana, frágeis e necessitados de ajuda e apoio recíprocos.

Até nas contas do governo brasileiro, sempre apertadas e minguadas para a saúde e a assistência social, como num passe de mágica deu para prover socorro aos pobres e aos trabalhadores desempregados ou subempregados! Inúmeras empresas e grupos econômicos uniram-se para promover iniciativas de solidariedade, proporcionando alimento e socorro a famílias e comunidades carentes, leitos, máscaras, respiradores mecânicos e toda sorte de equipamentos para hospitais, ampliando a capacidade das estruturas sanitárias para o cuidado dos doentes.

Quando vejo que tudo isso acontece, penso que, apesar da angústia desta pandemia, há brotos de esperança despontando por toda parte. Esse mundo ainda tem jeito, porque o coração humano, apesar de tudo, está vacinado contra o pior de todos os vírus: a insensibilidade e o individualismo egoísta. A pandemia está ocasionando a superação do tédio, fruto da falta de sentido na vida. Está ajudando a dar novo valor ao que há de mais humano no coração das pessoas: o amor sincero, a dedicação graciosa ao irmão frágil e caído. Esse é o bem mais precioso na vida e por ele vale a pena viver e lutar!

Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo de São Paulo
Publicado em "O Estado de São Paulo"