‘A vida é a principal riqueza’

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Monsenhor Bruno-Marie Duffé esteve em São Paulo, ele participou, no dia 17, do Seminário Internacional “Futuro do Trabalho
Publicado em: 31/05/2019 - 09:30
Créditos: Daniel Gomes

O Secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, organismo da Santa Sé dedicado às questões de justiça, paz, migrações, saúde, obras de caridade e cuidado da Criação, Monsenhor Bruno-Marie Duffé, visitou o Brasil neste mês. Em São Paulo, ele participou, no dia 17, do Seminário Internacional “Futuro do Trabalho – Liderança, educação e inovação a serviço do desenvolvimento humano integral”. Na ocasião, ele apresentou detalhes do livro “A Vocação do Líder Empresarial – Uma Reflexão” e conversou com O SÃO PAULO sobre a temática da obra. A entrevista a seguir agrega as respostas do Monsenhor e trechos da conferência que proferiu no evento.

O SÃO PAULO – Sob a perspectiva cristã, o que é vocação?

Monsenhor Bruno-Marie Duffé – A vocação não é somente a descoberta de um talento pessoal ou de uma capacidade, nem a administração de uma empresa ou de uma experiência. A vocação é receber um chamado. No Cristianismo, falamos de um chamado do Deus criador e pai, de um chamado de Jesus, que veio para anunciar a Boa Notícia aos pobres, dar a liberdade aos cativos e oferecer a alegria aos que vivem na tristeza. Trata-se de um chamado do Espírito Santo também, que revela a cada um os próprios talentos e os talentos dos outros com quem trabalhamos cada dia; é a diversidade dos carismas, como diz o Santo Padre; diversidade e unidade, do mesmo espírito que vive em todos os humanos, porque Deus dá sua graça e seu amor a todos, sem diferença, sem discriminação. A vocação é também uma experiência de cooperação de todas as empresas e da sociedade, em um mundo que vive a globalização, mas também a tensão, a dialética e, às vezes, o conflito entre a unidade da globalização e a particularidade entre o global e o local, entre a colaboração mundial e o mercado, e a busca de fidelidade às particularidades da cultura local. 

Como pode ser entendida a vocação no ambiente empresarial?

A vocação do empresário é, primeiro, um chamado a ter cuidado com a criação de Deus, com a natureza, com os recursos naturais, que são condições para a vida de hoje, para o futuro da vida, do planeta e da casa comum. A vocação, então, é, em um primeiro sentido, um chamado a continuar a Criação com cuidado, com sabedoria, com ética, com discernimento, para saber o que é melhor para a humanidade e para o futuro da vida no planeta.

O senhor disse em primeiro sentido; há outro, portanto?

Outra maneira de falar sobre a vocação do empresário é que ele é chamado a propor e desenvolver nas empresas e em todos os lugares de trabalho a cultura do encontro, do diálogo e da confiança. Há que se começar pelo encontro com o outro, provocando o diálogo, uma negociação permanente e de confiança, o que quer dizer, “eu creio contigo”, “eu creio em ti”, “eu creio em tua capacidade”. Essa maneira de pensar a vocação abre a perspectiva de uma cultura de responsabilidade compartilhada. Não é só o empresário que deve ter responsabilidade em uma empresa, mas também os trabalhadores e todos os cooperadores. Eu penso até que o empresário é como um pastor que conduz um grupo com respeito, dignidade e com a subsidiariedade. Uma empresa é como uma comunidade, um lugar onde se podem compartilhar os talentos, as diferenças e construir um projeto, um produto, uma economia com todas as pessoas. A subsidiariedade, que é um diálogo social com todos os líderes, é uma maneira de dar meios para cooperar mais, um exercício de troca respeitosa entre os atores do complexo social. É realmente uma sabedoria que chama os empresários a manter um diálogo entre os atores de uma empresa, e chamá-los a viver a responsabilidade. A subsidiariedade, no interior da empresa, é uma escola para a responsabilidade e para a solidariedade social.

E como devem se posicionar as empresas nocenárioeconômico sob essa perspectiva?

Esse é um terceiro ponto sobre a vocação. Trata-se de uma responsabilidade compartilhada no mundo econômico e nas empresas. Consiste em dizer que o lucro de uma empresa não se resume em ter cada vez mais. O lucro que tem sentido é o que considera, de maneira primordial, o futuro do trabalho, da Criação, das pessoas, da vida e da biodiversidade. Nessa perspectiva, investir é não só dar dinheiro para um projeto, mas também confiar nele e nas pessoas que o desenvolvem. Isso é, sem dúvida, o ponto mais sensível da nossa reflexão sobre a vocação dos empresários, porque, à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja, o empresário não pode aceitar um lucro que não leve em consideração as pessoas, a justiça social e o futuro da economia e do planeta. Parece-me importante haver uma conexão entre a comunidade e complementariedade. Sobre esse ponto, a reflexão da encíclica Laudato Si’, a propósito da busca de um novo paradigma cultural do desenvolvimento, pode aparecer determinante. Esse novo paradigma não pode estar reduzido ao paradigma da tecnocracia. Necessitamos de um debate sobre o que é o melhor para o futuro da comunidade humana. Sobre isso, pode-se dizer que necessitamos de um paradigma, uma maneira de construir nossos conceitos. Nossa fé é uma inspiração para viver, não somente um crer, é nossa visão de futuro e nossa responsabilidade concreta. Pode-se dizer que os quatro pontos de referência, como em uma bússola, para esse paradigma são a esperança, a fé, o futuro e a nossa corresponsabilidade.

Isso leva a um novo entendimento sobre a geração de riqueza? Entendemos a cada dia mais que a riqueza não quer dizer simplesmente a acumulação de dinheiro, de poder, de objetos ou de controle da atividade e das pessoas. A riqueza bela é a riqueza das pessoas mesmas e do que compartilhamos com cada uma. Estamos ricos em conjunto e nunca sozinhos. A vocação do empresário é a vocação de reconhecer a riqueza de cada pessoa, a riqueza da Criação que Deus nos deu e a riqueza do que podemos realizar junto com os carismas, os talentos de todos.

O progresso econômico e o desenvolvimento humano integral podem caminhar juntos?

É necessário saber o que fazemos com os recursos financeiros. Por exemplo: em 2008, quando foi decidido salvar os bancos, eles receberam dinheiro. Hoje, 2019, temos de saber se queremos salvar o planeta e o futuro da vida. Para isso, será preciso dinheiro, mas essa é a razão pela qual é colocada uma reflexão sobre investir: necessitamos atualmente de uma reflexão sobre as consequências dos investimentos, dos investimentos sociais e dos investimentos sobre a proteção e futuro do planeta. É preciso haver uma reconciliação entre o mundo financeiro e o mundo da economia real. Atualmente, o problema mais difícil para os empresários e as empresas é receber financiamento para desenvolver programas de uma nova economia, de uma economia ecológica.

Episódios como o de Brumadinho, em minas gerais [ele visitou as famílias das vítimas no dia 18], vão na contramão dessa economia ecológica?

O mais importante dessa minha ida a Brumadinho é estar com as famílias das vítimas, visitar uma comunidade que sofre pela morte de pessoas próximas. Temos de compartilhar a tristeza dessas famílias. No entanto, essa visita é também oportunidade para abrir uma reflexão sobre o desenvolvimento e, particularmente, sobre o extrativismo, sobre qual é a função e a dimensão das minas na economia, particularmente no Brasil. Temos de iniciar uma reflexão muito forte sobre o que podemos fazer para proteger a vida e as comunidades, para considerar a dignidade das pessoas e das comunidades, porque não é possível continuar com uma economia em que o lucro passe antes da proteção da vida. A vida é a principal riqueza. A economia não pode levar a um caminho de morte, mas deve ser um caminho de vida.

As opiniões expressas na seção “Com a Palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.

Luciney Martins / O SÃO PAULO